São Miguel Archanjo, na Catedral de Buenos Aires. Um símbolo contra os malfeitores, contra a corrupção. |
Monumento a San Martin, heroi argentino, na Praça de Maio, em Buenos Aires. |
Não,
não é mesmo uma iniciativa nossa. Não nasceu de uma necessidade nossa. Não tem
a ver com uma postura crítica diante dos desmandos do nosso governo. Não trata
de ficarmos mais atentos e mais seletivos com nossos políticos, nossos
corruptos da vez. Nossos, no sentido, de brasileiro. Bem que poderia, mas não
é, já que apenas nos reunimos diante da TV que passa o Big Brother. Ou
acorremos para assistir o carnaval do marketing baiano. Mas, na maior parte do
tempo, nos omitimos, não emitimos nenhum comentário, fechamos olhos, ouvidos e
bocas, como os famosos três macaquinhos. E diante de nossa conivência covarde,
damos espaços para que, dia após dia, denúncias sejam apresentadas sem que
saibamos o que acontecerá depois dessas denúncias serem investigadas
(se forem, claro), os responsáveis serem indiciados e a Justiça – tão contestada
por aqui, ultimamente – decidir com firmeza e mandar os malfeitores para a
cadeia ou recuperar, com eles, o que desviaram dos cofres públicos.
Nós
brasileiros – todos nós, mesmo – temos que também retomar um pensamento crítico
que perdemos ao longo dos últimos anos. Temos que questionar muitas coisas,
sempre criticamente, mas também não ficarmos apenas no discurso vazio da
denúncia que, no entanto, nos imobiliza enquanto sociedade organizada. Estamos
perdendo o senso crítico, porque perdemos a capacidade de fazer de nossa
indignação um ato de fé e de coragem. Um ato de revolta.
O
que abaixo é proposto na forma de um manifesto veio do sul do Rio da Prata.
Nasceu por iniciativa de corajosos intelectuais – que fazem parte do povo – da Argentina.
E vai assinada por importantes personalidades argentinas. Os intelectuais que
assinam o manifesto, se posicionam contrários a outro assinado também por
intelectuais que apóiam de modo irrestrito a política empreendida na Argentina
pela presidente Cristina Kirchner.
Segue, na tradução que fiz, o manifesto do grupo que ganhou o nome de PLATAFORMA 2012:
Plataforma para a
recuperação do pensamento crítico
Escapar
ao efeito impositivo de um discurso hegemônico não é uma tarefa fácil. Mas é
necessário e possível gerar uma voz coletiva que enuncie este problema e o
transforme em ato de demanda. Se algo nos define como intelectuais é pensar
sobre o mundo e a sociedade na qual vivemos, por em discussão os problemas que
nos afligem, promover o debate de ideias, tentar ler além da letra manifesta e
visualizar o oculto, tratar de sair da mera aparência dos efeitos para
aprofundar nas causas que os determinam. Em síntese, sustentar nossa capacidade
e consciência crítica e manifestá-la, romper o silêncio, como passo
imprescindível até uma ação coletiva e transformadora.
Não
encontramos este ânimo em alguns trabalhadores do campo da cultura, a quem
temos respeitado e queremos seguir respeitando, mas que ao colocarem-se como
portavozes do governo estão produzindo uma metamorfose em relação com sua
história e sua postura crítica.
Nos
encontramos diante de verdadeiros escândalos de diferente natureza e qualidade,
que tem como denominador comum a impunidade em relação com as responsabilidade
de quem nos governam. E de modo paralelo, assistimos a construção de um relato
oficial, que por via da negação, ocultamento ou manipulação dos fatos, pretende
revestir de façanha épica o atual estado de coisas.
Javier Chocobar, Diego Bonefoi, Nicolás Carrasco,
Sergio Cárdenas, Mariano Ferreyra, Roberto López, Mario López, Mártires López,
Bernardo Salgueiro, Rosemary Chura Puña, Emilio Canavari, Ariel Farfán, Felix
Reyes, Juan Velázquez, Alejandro Farfán, Cristian Ferreira. Vemos
crescer a lista dos assassinados. Mortes que em sua repetição não deixam de
assombrar-nos. Mortes que vão cobrindo toda nossa geografia. Mortes que, longe
de serem inocentes, marcam um encarniçamento repressivo que não pode ser negado
nem atribuído a decisões anteriores para tirar a responsabilidade do governo
central. Agora descobrimos que desde 1994 somos um país federal, e que portanto
as mortes dependem das polícias das províncias (estados), ou dos caciques
locais. Curiosa apelação ao federalismo, quando é o governo nacional o que
exerce o centralismo unitário e decide de fato os pressupostos provinciais
(estaduais), o que decide candidaturas, impõe ministros e se abraça com os
governadores quase ao mesmo tempo de ocorridos os fatos.
Muitas das últimas mortes estão vinculadas à
questão da falta de terras, e por trás de cada nome há uma história de vida que
se remonta à histórica luta dos povos primitivos contra a espoliação a que
foram submetidos. O processo de concentração da propriedade da terra e a
soja-dependência dos últimos oito anos são uma correlação com o presente
daquela espoliação, que o discurso oficial oculta. O “relato” hegemônico
pretende impor-se sobre a materialidade e o valor simbólico destas mortes.
Efetivamente, em torno destes e muitos outros acontecimentos, se elabora um
discurso oficial que constrói consensos, porque aparenta dar conta de uma série
de necessidades sociais e reivindicações nacionais enquanto se confirma a
persistência do mesmo que aparenta questionar. Este relato disciplinador e
enganoso utiliza a potência dos recursos de comunicação de que dispõe de modo
crescente o governo para exercer controle social mediante a indução de
mecanismos de alienação sobre as formas coletivas da subjetividade.
Querem aparecer como atores de uma façanha contra
as “corporações”, enquanto grandes corporações como a Barrick Gold, Cerro
Vanguardia, General Motors, os produtores de grãos, os bancos ou as empresas
petroleiras e o próprio grupo Clarín, hoje apontado como “a grande corporação
inimiga” tem recebido enormes privilégios deste governo. Querem também aparecer
como protagonistas de uma histórica transformação social, enquanto a rachadura
da desigualdade se aprofunda. E quando a realidade se impõe sobre o “relato”,
os portavozes oficiais e oficiosos do governo sustentam que se trata do “que falta”.
Segundo os intelectuais reunidos em CARTA ABERTA (grupo de artistas e
escritores que apóiam e defendem a política da presidente Cristina Kirchner), o
“que falta” seria mais aquém de “assinaturas pendentes” que estariam dispostos
a admitir uma questão de “imaginação política”. E o que é evidência e sintoma
do que não só não se transforma senão que se aprofunda seria como no fenômeno
das placas tectônicas – algo assim como sobras traumáticas do passado no
interior de um processo transformador, que reaparecem uma ou outra vez. O conteúdo
da produção ideológica oficial se inscreve numa metodologia. A discussão de
ideias é substituída pela desqualificação do interlocutor e toda dissidência é
estigmatizada. O debate torna-se trivial, bravata “intelectual”, sacralização
de seus referentes com independência das ações que produzem, são só algumas das
modalidade nas que se expressa a vontade de impor um discurso único. A partir
dos veículos públicos se utiliza a difamação de toda voz crítica por meio de
recortes de frases, repetições, enganos e denúncias como procedimento intimidatório
e se invalida essas mesmas vozes quando se expressam em outros veículos, se
produz um isolamento que por uma ou outra via somente promove o silêncio. Hoje a homogeneidade discursiva começa a ficar
atravessada por algumas filtrações que a corroem: o relato épico iniciou um
processo de certo desmascaramento. A associação entre direito de greve e
extorsão ou chantagem, ou a justificação da sanção da lei antiterror, seriam
expressões paradigmáticas deste fenômeno. Apesar da força disciplinadora do
discurso hegemônico, é nossa responsabilidade como intelectuais e trabalhadores
da cultura romper o silencio que pretende amordaçar o pensamento crítico e
promover um debate transformador dos grandes problemas impostos no presente. É
necessário. E é possível.
Entre as assinaturas que se destacam no manifesto
conhecido por “Plataforma 2012”, estão as de escritores, cineastas, artistas
plásticos e atores como Javier Chocobar, Diego Bonefoi, Nicolás Carrasco,
Sergio Cárdenas, Mariano Ferreyra, Roberto López, Mario López, Mártires López,
Bernardo Salgueiro, Rosemary Chura Puña, Emilio Canavari, Ariel Farfán, Felix
Reyes, Juan Velázquez, Alejandro Farfán, Cristian Ferreira, Pablo Albarello,
Mirta Antonelli, Bibiana Apolonia de Brutto, Norma Barros, Héctor Bidonde, José
Emilio Burucúa, Jorge Brega, Manuel Callau, Ana Candiotti, Andrés Carrasco,
Nora Correas, Diana Dowek, Lucila Edelman, Sandra Franzen, Roberto Gargarella,
Adriana Genta, Norma Giarracca, Liliana Helman, Eduardo Iglesias Brickles,
Diana Kordon, Darío Lagos, Alba Lancillotto, Adriana Lestido, Matilde Marin,
Lucrecia Martel, Gabriela Massuh, Francisco Menéndez, Luis Felipe Noe, José
Miguel Onaindia, Jorge Pellegrini, Derly Prada, Mabel Ruggiero, Carlos Ruíz,
Alfredo Saavedra, Guillermo Saccomano, Luis Sáez, Horacio Safons, Beatriz Sarlo, Alberto Sava, Herman Schiller, Aurora
Juana Schreiber, Maristella Svampa, Nicolás Tauber Sanz, Miguel Teubal, Osvaldo
Tcherkaski, Yaco Tieffenberg, Enrique Viale, Dennis Weisbrot, Patricia Zangaro,
Daniel Zelaya.
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