sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Um diálogo que poderá ser meu com alguém

Na peça teatral, escrita por Ignácio de Loyola Brandão, "A última viagem de Borges", publicada em livro com duas versões do seu texto - Global Editora - São Paulo - 2005 - e que comprei esta semana no Rio de Janeiro, o personagem Borges (sim, o poeta argentino Jorge Luis Borges) dialoga com o Bibliotecário Imperfeito, na sua busca por uma palavra.


Borges - Quanta complicação! Para que tudo isso? Só para confundir? É tudo tão simples, tudo o que preciso é de uma palavra!

Bibliotecário Imperfeito - Precisa! Eu já sei que precisa! Pare de repetir. Eu já sei. Sei. Acaso o senhor conhece a Biblioteca?

Borges - Se eu dissesse que a criei, o senhor não acreditaria.

Bibliotecário Imperfeito - Será que sabe, então, que aqui existem normas, regulamentos, instituições. Aqui se podem ver "discrepâncias, escadas, galerias hexagonais, poços de ventilação, longas prateleiras. Há vestíbulos, cômodos semelhantes ainda que opostos, espelhos que duplicam, triplicam, quadriplicam, frutas esféricas fornecendo luz, paradoxos, contradições, falsos signos, disparates. Deparamos com escadas sem degraus, degraus sem escadas, cômodos desiguais ainda que semelhantes, buracos que não dão em lugar nenhum, salas sem entradas e saídas. Milhares de livros sem páginas, páginas sem letras, escritas sem palavras".

Borges - Tudo o que desejo, o que preciso, é uma palavra só, pequena, de oito letras. Uma palavra que criei e preciso dela para continuar a existir, a escrever.

Bibliotecário Imperfeito - As palavras nos pertencem. A nós da Biblioteca, o senhor sabe.

Borges - Mas elas são de todos.

Bibliotecário Imperfeito - Nem todas.

Borges - Essa é minha.

(páginas 62 e 63)

Assim como o personagem Borges, no diálogo acima, eu também procurei uma palavra. Uma palavra com oito letras. Sim, as mesmas oito letras da palavra perdida pelo personagem Borges. No meu caso, a palavra é um nome, embora continue sendo uma palavra. É uma palavra vital para mim, agora. Fazendo das palavras do Loyola Brandão as minhas, repito:

"Tudo o que desejo, o que preciso, é uma palavra só, pequena, de oito letras. Uma palavra que criei e preciso dela para continuar a existir, a escrever."

E justifico:

A tal palavra, que é nome, sendo uma palavra de oito letras, transcende outros entendimentos, outras visões, outras prerrogativas. Eu preciso dessa palavra, da tal de oito letras, para fazer com que ela produza a mágica de permitir que eu conte uma fábula. Sim, uma fábula. Ficção, invenção sim, nada real, nada fundado na realidade ou na História. A tal palavra lastreia minha fábula e dá a ela apenas o ensejo para que todas as outras palavras tornem-se válidas e possam ser ditas com a emoção e a força que merecem e precisam ser ditas. Eu preciso dessa palavra que, para mim, assim como para Loyola Brandão, como para Borges, será utilizada na minha "evocação poética", na minha "homenagem".

Eu preciso dessa palavra. Dessa palavra de apenas oito letras.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Uma certeira flecha


Nem um dia se passa sem notícias suas

Comentários críticos

Rogério Viana


Joaquim, bem sucedido cirurgião, acaba de perder o pai e se interna na casa onde sua família viveu para resgatar, de baús e de sua memória, mais que simples objetos – discos, livros, roupas. Naquela casa, onde passou sua vida até os 27 anos, ele vai para inventariar lembranças e emoções e descobrir quanto importante será remexer em objetos e reviver o que havia ficado ao longo do caminho e o que lhe será revelado no instante em que estiver lá, na solidão de suas lembranças.

Joaquim é Edson Celulari, na montagem de “Nem um dia se passa sem notícias suas”, texto de Daniela Pereira de Carvalho, dirigida por Gilberto Gawronski, que está em cartaz no Teatro do Leblon, na sala Tonia Carrero, no Rio de Janeiro.

Ao pegar uma luminária móvel de uma fraca e quente luz amarela – dessas utilizadas por mecânicos para iluminar motores de carros – Joaquim é surpreendido pela entrada em cena de Juliano, seu irmão mais novo, que aparece segurando, entre cortinas transparentes, uma outra luminária móvel, de uma luz mais forte, porém, branca e fria.

Está posta em cena o que vai acontecer. O calor das lembranças e dos acontecimentos reais esmaecidos pelo tempo, passam a ecoar na frieza de uma realidade antes jamais entendida ou percebida pelo competente cirurgião. Ele, que salva vidas, relembra ter ficado impotente diante da trágica cena de encontrar seu irmão morto, que se transformou numa ilha rodeada de sangue e pedaços de si mesmo ao ter se suicidado com um tiro na cabeça.

No instante em que Juliano entra em cena, os objetos que iam ser resgatados, deixam de ser importantes e o que Joaquim passa a viver está apenas dentro dele mesmo, no seu olhar para aquelas coisas. Joaquim olha para dentro de si e empreende um acerto de contas com o passado, na solidão de um espaço onde o que apenas tem vida é ele próprio. Aquele lugar, criado por Daniela Pereira de Carvalho, é um mundo onde “o presente foge, o passado volta e o futuro passa”.

A peça foi escrita para ser encenada por Edson Celulari e seu sobrinho Pedro Garcia Netto e, talvez, amparado nesta indelével marca da consanguinidade, os dois atores tenham conseguido empreender um jogo orgânico, potente e eficaz que foi construído pela segura e discreta direção de Gawronski em cima do texto de Daniela Pereira de Carvalho.

Sem exageros melodramáticos, Celulari e Garcia Neto – tio e sobrinho – fazem verter insuspeitas lágrimas, quando os irmãos se encontram, no tempo onírico da memoria, mas, depois, muito mais potente, no campo físico mesmo, quando pai e filho, o adulto seguro se encontra com um deslumbrado e amoroso filho, que revela e demonstra sua forte ligação com seu avô recém falecido e com o tio que ele só conheceu por fotos e de quem é uma perfeito cópia física.

A montagem tem algumas sutis citações, pelo menos percebidas por mim: nas cenas iniciais, num tipo de “A chorus line” improvisado, o diretor faz Celulari lembrar e citar a ex mulher do ator, a atriz e bailarina Cláudia Raya. Cita, também, pela bela trilha sonora de música norte-americana, um passado musical e dançante daquelas famílias – da que se faz presente como personagens e na que tio e sobrinho vivem fisicamente ao se tocarem, em longos abraços, e numa dança que flui tão bonita e tão desajeitada como a dança da vida e o afeto em cada olhar, em cada palavra, em cada lágrima que a tristeza de Joaquim só consegue verter para dentro de si mesmo, mas que é viva, presente e esperançosa pelo filho adolescente, que se diz “emo” e que pega da casa do avô, um simbólico arco e flecha. Aquele que ele, com certeza, vai arremessar suas esperanças para um futuro menos trágico e dolorido que o presente vivido pelo seu pai, no confronto de suas lembranças com o passado.

A emoção da montagem atingiu o alvo e, na plateia, o aplauso veio com a certeza de ter sido atingida por uma certeira flecha: os afetos primários de todos nós podem ser sempre resgatados se tivermos os olhos abertos para o revelado pela bela poesia que a jovem autora Daniela Pereira de Carvalho criou para tio e sobrinho, dois irmãos, pai e filho. Nós e eles. O real e o sonho. O prazer de sorrir depois da catarse de um choro que veio espontâneo numa noite chuvosa do Rio de Janeiro.

NEM UM DIA SE PASSA SEM NOTÍCIAS SUAS - Texto de Daniela Pereira de Carvalho. Direção de Gilberto Gawronski. Com Edson Celulari e Pedro Garcia Netto. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Quintas, 18h (a partir de 15/09), sexta e sábado às 21h30, domingo às 20h.