sábado, 14 de janeiro de 2012

Plataforma para a recuperação do pensamento crítico

São Miguel Archanjo, na Catedral de Buenos Aires.
Um símbolo contra os malfeitores, contra a corrupção.

Monumento a San Martin, heroi argentino,
na Praça de Maio, em Buenos Aires.





Não, não é mesmo uma iniciativa nossa. Não nasceu de uma necessidade nossa. Não tem a ver com uma postura crítica diante dos desmandos do nosso governo. Não trata de ficarmos mais atentos e mais seletivos com nossos políticos, nossos corruptos da vez. Nossos, no sentido, de brasileiro. Bem que poderia, mas não é, já que apenas nos reunimos diante da TV que passa o Big Brother. Ou acorremos para assistir o carnaval do marketing baiano. Mas, na maior parte do tempo, nos omitimos, não emitimos nenhum comentário, fechamos olhos, ouvidos e bocas, como os famosos três macaquinhos. E diante de nossa conivência covarde, damos espaços para que, dia após dia, denúncias sejam apresentadas sem que saibamos o que acontecerá depois dessas denúncias serem investigadas (se forem, claro), os responsáveis serem indiciados e a Justiça – tão contestada por aqui, ultimamente – decidir com firmeza e mandar os malfeitores para a cadeia ou recuperar, com eles, o que desviaram dos cofres públicos.

Nós brasileiros – todos nós, mesmo – temos que também retomar um pensamento crítico que perdemos ao longo dos últimos anos. Temos que questionar muitas coisas, sempre criticamente, mas também não ficarmos apenas no discurso vazio da denúncia que, no entanto, nos imobiliza enquanto sociedade organizada. Estamos perdendo o senso crítico, porque perdemos a capacidade de fazer de nossa indignação um ato de fé e de coragem. Um ato de revolta.

O que abaixo é proposto na forma de um manifesto veio do sul do Rio da Prata. Nasceu por iniciativa de corajosos intelectuais – que fazem parte do povo – da Argentina. E vai assinada por importantes personalidades argentinas. Os intelectuais que assinam o manifesto, se posicionam contrários a outro assinado também por intelectuais que apóiam de modo irrestrito a política empreendida na Argentina pela presidente Cristina Kirchner.

Segue, na tradução que fiz, o manifesto do grupo que ganhou o nome de PLATAFORMA 2012:

Plataforma para a recuperação do pensamento crítico


Escapar ao efeito impositivo de um discurso hegemônico não é uma tarefa fácil. Mas é necessário e possível gerar uma voz coletiva que enuncie este problema e o transforme em ato de demanda. Se algo nos define como intelectuais é pensar sobre o mundo e a sociedade na qual vivemos, por em discussão os problemas que nos afligem, promover o debate de ideias, tentar ler além da letra manifesta e visualizar o oculto, tratar de sair da mera aparência dos efeitos para aprofundar nas causas que os determinam. Em síntese, sustentar nossa capacidade e consciência crítica e manifestá-la, romper o silêncio, como passo imprescindível até uma ação coletiva e transformadora.
Não encontramos este ânimo em alguns trabalhadores do campo da cultura, a quem temos respeitado e queremos seguir respeitando, mas que ao colocarem-se como portavozes do governo estão produzindo uma metamorfose em relação com sua história e sua postura crítica.

Nos encontramos diante de verdadeiros escândalos de diferente natureza e qualidade, que tem como denominador comum a impunidade em relação com as responsabilidade de quem nos governam. E de modo paralelo, assistimos a construção de um relato oficial, que por via da negação, ocultamento ou manipulação dos fatos, pretende revestir de façanha épica o atual estado de coisas.

Javier Chocobar, Diego Bonefoi, Nicolás Carrasco, Sergio Cárdenas, Mariano Ferreyra, Roberto López, Mario López, Mártires López, Bernardo Salgueiro, Rosemary Chura Puña, Emilio Canavari, Ariel Farfán, Felix Reyes, Juan Velázquez, Alejandro Farfán, Cristian Ferreira. Vemos crescer a lista dos assassinados. Mortes que em sua repetição não deixam de assombrar-nos. Mortes que vão cobrindo toda nossa geografia. Mortes que, longe de serem inocentes, marcam um encarniçamento repressivo que não pode ser negado nem atribuído a decisões anteriores para tirar a responsabilidade do governo central. Agora descobrimos que desde 1994 somos um país federal, e que portanto as mortes dependem das polícias das províncias (estados), ou dos caciques locais. Curiosa apelação ao federalismo, quando é o governo nacional o que exerce o centralismo unitário e decide de fato os pressupostos provinciais (estaduais), o que decide candidaturas, impõe ministros e se abraça com os governadores quase ao mesmo tempo de ocorridos os fatos.

Muitas das últimas mortes estão vinculadas à questão da falta de terras, e por trás de cada nome há uma história de vida que se remonta à histórica luta dos povos primitivos contra a espoliação a que foram submetidos. O processo de concentração da propriedade da terra e a soja-dependência dos últimos oito anos são uma correlação com o presente daquela espoliação, que o discurso oficial oculta. O “relato” hegemônico pretende impor-se sobre a materialidade e o valor simbólico destas mortes. Efetivamente, em torno destes e muitos outros acontecimentos, se elabora um discurso oficial que constrói consensos, porque aparenta dar conta de uma série de necessidades sociais e reivindicações nacionais enquanto se confirma a persistência do mesmo que aparenta questionar. Este relato disciplinador e enganoso utiliza a potência dos recursos de comunicação de que dispõe de modo crescente o governo para exercer controle social mediante a indução de mecanismos de alienação sobre as formas coletivas da subjetividade.

Querem aparecer como atores de uma façanha contra as “corporações”, enquanto grandes corporações como a Barrick Gold, Cerro Vanguardia, General Motors, os produtores de grãos, os bancos ou as empresas petroleiras e o próprio grupo Clarín, hoje apontado como “a grande corporação inimiga” tem recebido enormes privilégios deste governo. Querem também aparecer como protagonistas de uma histórica transformação social, enquanto a rachadura da desigualdade se aprofunda. E quando a realidade se impõe sobre o “relato”, os portavozes oficiais e oficiosos do governo sustentam que se trata do “que falta”. Segundo os intelectuais reunidos em CARTA ABERTA (grupo de artistas e escritores que apóiam e defendem a política da presidente Cristina Kirchner), o “que falta” seria mais aquém de “assinaturas pendentes” que estariam dispostos a admitir uma questão de “imaginação política”. E o que é evidência e sintoma do que não só não se transforma senão que se aprofunda seria como no fenômeno das placas tectônicas – algo assim como sobras traumáticas do passado no interior de um processo transformador, que reaparecem uma ou outra vez. O conteúdo da produção ideológica oficial se inscreve numa metodologia. A discussão de ideias é substituída pela desqualificação do interlocutor e toda dissidência é estigmatizada. O debate torna-se trivial, bravata “intelectual”, sacralização de seus referentes com independência das ações que produzem, são só algumas das modalidade nas que se expressa a vontade de impor um discurso único. A partir dos veículos públicos se utiliza a difamação de toda voz crítica por meio de recortes de frases, repetições, enganos e denúncias como procedimento intimidatório e se invalida essas mesmas vozes quando se expressam em outros veículos, se produz um isolamento que por uma ou outra via somente promove o silêncio.  Hoje a homogeneidade discursiva começa a ficar atravessada por algumas filtrações que a corroem: o relato épico iniciou um processo de certo desmascaramento. A associação entre direito de greve e extorsão ou chantagem, ou a justificação da sanção da lei antiterror, seriam expressões paradigmáticas deste fenômeno. Apesar da força disciplinadora do discurso hegemônico, é nossa responsabilidade como intelectuais e trabalhadores da cultura romper o silencio que pretende amordaçar o pensamento crítico e promover um debate transformador dos grandes problemas impostos no presente. É necessário. E é possível.

Entre as assinaturas que se destacam no manifesto conhecido por “Plataforma 2012”, estão as de escritores, cineastas, artistas plásticos e atores como Javier Chocobar, Diego Bonefoi, Nicolás Carrasco, Sergio Cárdenas, Mariano Ferreyra, Roberto López, Mario López, Mártires López, Bernardo Salgueiro, Rosemary Chura Puña, Emilio Canavari, Ariel Farfán, Felix Reyes, Juan Velázquez, Alejandro Farfán, Cristian Ferreira, Pablo Albarello, Mirta Antonelli, Bibiana Apolonia de Brutto, Norma Barros, Héctor Bidonde, José Emilio Burucúa, Jorge Brega, Manuel Callau, Ana Candiotti, Andrés Carrasco, Nora Correas, Diana Dowek, Lucila Edelman, Sandra Franzen, Roberto Gargarella, Adriana Genta, Norma Giarracca, Liliana Helman, Eduardo Iglesias Brickles, Diana Kordon, Darío Lagos, Alba Lancillotto, Adriana Lestido, Matilde Marin, Lucrecia Martel, Gabriela Massuh, Francisco Menéndez, Luis Felipe Noe, José Miguel Onaindia, Jorge Pellegrini, Derly Prada, Mabel Ruggiero, Carlos Ruíz, Alfredo Saavedra, Guillermo Saccomano, Luis Sáez, Horacio Safons, Beatriz Sarlo, Alberto Sava, Herman Schiller, Aurora Juana Schreiber, Maristella Svampa, Nicolás Tauber Sanz, Miguel Teubal, Osvaldo Tcherkaski, Yaco Tieffenberg, Enrique Viale, Dennis Weisbrot, Patricia Zangaro, Daniel Zelaya.


 Será que vamos nos organizar para também criarmos uma PLATAFORMA 2012 para o Brasil, já que, neste ano, teremos as eleições municipais?




quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Um texto que faz dançar

O texto é uma possibilidade, sendo ao mesmo tempo um jogo, uma dança, um desafio.
O texto dança sob o comando dos personagens.

O texto abaixo e outra citação de minha peça foi enviada para um ator e diretor amigo. Ele foi o primeiro a ler o texto e a comentá-lo. Na troca de comentários e informações entre nós, numa espécie de avaliação crítica do texto, eu lhe remeti o seguinte:

Outra questão a ser anotada sobre o texto FALSOS COGNATOS.

O jogo da cena é uma dança. Um tango, sugerido como tema, como fundo musical. Um ensaio de teatro, mas onde é a dança de um texto nas mãos de quatro personagens que se evidencia. O texto é uma intenção. Não um simples fato. O texto é uma possibilidade, sendo ao mesmo tempo um jogo, uma dança, um desafio. O texto dança sob o comando dos personagens. Mas, eles dançam ou dança o texto?

E como dançam os personagens?

Na mudança de papeis. Na construção de passos que fazem, depois repetem ou fazem de outro jeito. A dança das palavras, sempre presente. Na tradução de uma dança que um pode não entender para onde o outro quer levar. Até que limites um parceiro tem o direito de levar o outro. Até que limites?  Nesse jogo, de palavras, de gestos, vai-se descobrindo não mais afinidades, mas e principalmente, diferenças, raivas, mágoas. Pedro admirava Juan, de quem traduzia algo. Mas eles, por fim, deixam explodir algo que os incomodava. Mas, como o texto revela, por ser autor, um é pai do outro (enquanto personagem). E a gente sempre sabe que para um homem conquistar sua condição de homem tem que matar o seu pai. Ou, para um autor, tem que matar, tem que aniquilar quem foi seu mestre. É meio assim, o jogo entre os personagens, mas, no caso, com a presença da voz e da alma feminina, já que tudo está misturado.


(...)


Pedro – Creio que a arrogância dessa afirmação tem um componente de insanidade, sim. Tem mesmo. Logo comparar pessoas tão diferentes.

Juan – A cada vez que eu lia, que relia, eu encontrava erros e os corrigia. Mas não eram erros. Eram visões diferentes que se sobrepunham à ideia original. Daí eu ter feito, ao longo dos últimos quatro minutos, mais de cinco versões diferentes para as últimas cinco páginas escritas. Viu só o volume de texto que tive que escrever? Reescrever, ler, reler? Interpretar, avaliar e, com isso, desvendar outros caminhos e deslindar os espaços, não só do que era físico, mas do que aparecia como possibilidade real para as duas mulheres. Uma prostituta não pode condenar outra. Sempre serão iguais. Iguais em sua intenção de viver. De viver. Que fique bem claro!

Pedro – Por este e outros motivos é que você não tem o direito de exigir que eu faça e refaça cada parte de sua trama com visões diferentes, mas pelo seu prisma. Pelo que lhe é permitido por ser primitivo. Original apenas do seu ponto de vista. Já disse, vezes antes, que iria romper com este olhar condescendente. Que teria quer buscar uma arrogância que a mim não aparece tão natural, para impregnar-me nela e enfrentar os desafios de ter que lhe dizer não. Não vou fazer assim, segundo os seus ditames. Não farei nada para afrontar meus posicionamentos éticos. Dá para você respeitar isso?

Débora – De novo vem a questão de se seguir o caminho reto do que não aparenta retidão de caráter, nem segue o que o autor indicou nas rubricas... Ele quer que as duas se comportem como prostitutas. Eu não sei como se comporta uma prostituta. Você sabe?

Letícia – Já fiz algumas. Já fui várias. Mas todas elas me fizeram entender que desejar o amor e vender o seu corpo não são um bom casamento de intenções. Posso amar de graça. Mas posso cobrar para viver um amor real e verdadeiro. Não, não... não me diga que condena esse pensamento! Não venha com sua ética moralizante e fora de época. E de contexto. Posso dar e não cobrar. E posso cobrar e não dar nunca! Muitas casadas agem assim com certos homens...

Pedro – Viu só como elas não podem se entender? Cada uma dança seu tango diferente. Dissonante. Não com o apuro técnico necessário. Cada uma dessas prostitutas não são dançarinas, são dançarinas que se prostituem. É o que me parece. Ou estou sendo preconceituoso com essa visão?

Débora – Como é irritante ter que ler isso, de novo. De novo, de novo e de novo! Eu amo o tango. Mas não faria dele uma oportunidade para ganhar mais do que olhares, admiração, aplausos... Eu vivo é disso. Não de outras coisas que possam surgir além da minha roupa, do meu aspecto, do que está mais distante do meu corpo e que me leva além do cabaré de paredes cor de malva, de fumaça de tabaco, de cheiros ancestrais e tristeza. E daquele vinho que dançava melhor na mão do bêbado que na do exímio bailarino.

Juan – Acho que você, desta vez, captou um pouco melhor o entendimento da alma daquela primeira mulher.

Pedro – Por que razão você não chama a Débora de Débora?

Juan – Pois ela nunca foi Débora. Ela se chama, na verdade, Patrícia. Mas sempre escreveu como se chamasse Elsa, sendo, em sua certidão de batismo, Letícia. Patrícia é Letícia, no batismo.

Letícia – Não sou prostituta, por favor não confunda o que está muito mal escrito. Não sou prostituta. Sou uma mulher livre que deseja apenas que reconheçam seu desejo de ser feliz. Mesmo por instantes inexpressivos. Instantes sempre são fugazes, eu sei, mas ser fugaz não se relaciona com nenhuma forma de inexpressividade. Está claro?

Débora – Tem certas noites, quando deito em minha cama desacompanhada que o último tango fica bailando comigo até o galo cantar. Até eu ouvir o canto daquela ancestral cotovia. Até eu ouvir a primeira buzina de uma motocicleta que teima em atravessar o cruzamento na contra mão, como se buzinando ela tivesse o direito de fazer tudo errado. Então, o som do tango dita o ritmo da motocicleta que se transforma em minha escolha. Querer ir na contramão, gozando do direito de estar errada, mas me sentindo livre, viva, amparada pelo respirar que deixa meu coração um pouco mais esperançoso.

Pedro – É mesmo um desafio entender o que dizem e o que querem essas duas mulheres...

Juan – Não, nem tanto.

Pedro – Mas elas me deixam confuso.

Juan – Não foi o sentimento que tive quando as encontrei perdidas em anotações de um velho caderno, com letras ilegíveis apontadas por um lápis de grafite macio em traços grossos, na anotação dos destinos de quem ainda estava por vir, mas que já existiam em meus sonhos e nas páginas e mais páginas de livros que tive que ler para tentar encontrar o significado do que seja ser uma dançarina de tango. Ou uma prostituta. Enfim, ser mulher naquelas circunstâncias, naqueles tempos perdidos e que ficaram retidos na retina de um homem que, não muito tempo depois, nada mais conseguia enxergar.

(...)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Palavras que não fazem mais sentido

Em "Falsos Cognatos", meu recente texto teatral, na terceira cena, que segue abaixo, um jogo com a palavra, com o sentido de traduzir. Se alguém consegue traduzir uma palavra, não consegue traduzir o sentimento que ela carrega. Sentimentos, muitas vezes, que foram levados para o futuro, e que, no presente não podem ser captados. Tudo é um jogo, de linguagem, sobretudo.


3 – Palavras que não fazem mais sentido

(a luz muda)

Juan - O autor, que também tenta traduzir-se a si mesmo, aos poucos vai se revelando, quando descobre similaridades entre o que alguém já havia escrito e o que ele já havia traduzido num tempo ainda não acontecido. Traduzir o futuro? Seria como inventá-lo. Inventar o passado, seria como trair o presente. E isso, bem isso é assunto para os próximos capítulos que estão por vir. E por outros que vieram, mas com certo atraso.

Pedro – Não gostei muito de como ficou esse trecho... Traduzir o futuro ou inventá-lo? Inventar o passado, traindo o presente?

Juan – Você não devia se preocupar demais com isso. Deixe as coisas irem assim, naturalmente. Prefiro que a tradução seja feita de forma romântica, voltada para a literalidade. A clássica, a tradução clássica, tenho que confessar, deixa-me com medo. Você consegue traduzir a obra. Já o artista, bem esse não se traduz apenas com palavras já que as palavras nem sempre são o que aparentam ser. O artista não é uma palavra solta. Obséquio não é obséquio sempre. Borges não é sempre Borges, pois nem sempre Ovídio foi Ovídio. Amado, não mais lembrado, deixou de ser Amado quando não traduziram o sentido romântico do que havia escrito? Havia nele um bobo romantismo político. Atenha-se à literalidade. O leitor, bem, o diretor da peça de teatro, qualquer um vai ler e interpretar do seu modo. Não se perca mais no que pode não ter mais sentido. Esse se constrói e você vai ver...

Letícia - Encontrei isso, meio que por acaso, mas não há autor. Vou pesquisar um pouco mais para ver se consigo descobrir de quem é. Vai aparecer logo mais...

Juan - O texto estava num velho caderno meu. De anotações. Um simples e velho caderno de anotações. Escrito a lápis, uma letra quase ilegível, escrita com pressa. Sim, talvez com pressa. Mas a letra talvez fosse ilegível pois estava escrita não com pressa, mas em código. Algo que nem o próprio autor, um dia, ia conseguir decifrar. Vivo escrevendo assim. Coisas indecifráveis escritas somente de forma clara aqui neste computador de tela novinha... Refiro-me à forma clara como aparecem as letras. Não os sentidos, está bem?

Débora – Ainda assim eu teimo em dizer que as notas de rodapé, assim como as rubricas, devem ser lidas com mais atenção. Nas rubricas, atenção maior, pois ali, quase sempre, há intenções que podem incendiar a palavra que vem logo abaixo. Eu insisto com você. Pode prestar um pouco mais de atenção ao que diz a rubrica? Pode, por favor, prestar mais...

Letícia – Você implica e não explica...

Juan – Não tenho que dar explicações a tudo o que tenho pensado. O que você quer? Desvendar-me além das poucas palavras que tenho conseguido escrever?

Pedro – Foi a partir desse trecho que precisei encontrar outros sentidos para o real significado da palavra desvendar... Do verbo desvendar. Sim, este verbo no infinitivo. O sentido em inglês pode ser bem diferente do sentido em francês, mas o sentido em italiano seria determinante para que eu o adotasse e deixasse de lado o que foi mesmo escrito em espanhol?

Juan – Gosto da palavra deslindar... É, sim, é o verbo deslindar. Aclarar, detalhar os limites de um assunto para não dar lugar a confusões. Também serve para assinalar os limites de um terreno. Viu como fica fácil substituir palavras que, em traduções literais ficariam pobres?

Pedro – Mas desvendar não é deslindar! Criar confusões é a arte do drama. Criar situações dramáticas, em síntese é dar lugar a confusões.

Juan – Quem sabe, mas aqui... por favor! Retire a venda e enxergue outros limites dos passos daquelas duas mulheres. Por onde elas caminharam? Foram até onde? Deixaram-se influenciar pelo que aparecia em notas de rodapé? Ou estavam mais preocupadas em seguirem à risca o indicado nas didascálias? Ir para a margem, atingir os limites de um terreno ou não limitar-se e não correr o risco de meterem-se em confusão? O que me diz?

Pedro – Tenho pensando muito se o que você escreveu tem algo a ver comigo. Mas você é você. Elas são elas. Eu apenas percorro, linha a linha, o que você escreveu, muitas vezes, com uma certa displicência. Muitas vezes, o que parecia ser displicente era de uma arrogância insana!


(...)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Quem traduz trai a palavra ainda não escrita

Certos vinhos descem como se fossem um tango aveludado,
dos fortes, antigos, inesquecíveis em seus toques de madeira envelhecida,
do piso onde bailaram tantas almas inquietas.

Meu mais recente texto de teatro - FALSOS COGNATOS - o décimo sétimo que escrevi e que completa 30 textos dramatúrgicos quando somados às treze traduções que fiz de autores de língua espanhola, tem referências a esses textos e a alguns desses autores.

Falsos cognatos, afinal, o que são?

Conhecidos, também, por falsos amigos ou falsos conhecidos, os falsos cognatos são palavras normalmente derivadas do latim que aparecem em diferentes idiomas com ortografia semelhante e que tem, portanto, a mesma origem, mas que ao longo dos tempos acabaram adquirindo significados diferentes.

Nesse novo texto, os falsos cognatos, os falsos amigos ou os falsos conhecidos, são, também, personagens que supomos conhecer, personagens que supomos serem amigos - nossos, a princípio, mas, também, amigos entre os demais personagens. Filhos, talvez, de um mesmo pai - pode ser um pai mau caráter, quem sabe - como podem ser filhos bastardos, filhos de uma mãe com passado pouco recomendável. Mas, esses personagens, marcados por origens mal explicadas, frutos, quem sabe, de relações não convencionais, verídicas ou mentirosas, em certos momentos estabelecem outras relações, trocam de papéis, invadem searas alheias. Traduzindo palavras, antecipando palavras, indo do futuro para o passado, quem traduz trai a palavra ainda não escrita.

Os falsos cognatos, fingem serem conhecidos uns dos outros enquanto personagens, mas estão mais para falsos amigos que para amigos reais e verdadeiros, neste jogo de cena onde a palavra e o papel que ela representa tem mais peso.

Os personagens são:


Pedro o tradutor, também personagem de si mesmo.

Juan o autor/bailarino, também autor de si mesmo.

Letíciaa musa/bailarina, sempre ela e outras.

Déboraa intérprete/tradutora da musa, nunca ela, sempre outras.



Aqui, os primeiros diálogos do texto:


Falsos cognatos

(Apenas quatro cadeiras. A luz pontua verticalmente a presença e a fala de cada personagem. Em certas cenas uma luz ampla que aparece e desaparece, sempre, em resistência. Não haverá cores nas luzes. Haverá interferências, quando necessário. Serão indicadas quando. Um texto está nas mãos de algum dos personagens. O texto troca de mãos, no ritmo e na evolução do próprio texto, na evolução dos quatro personagens. O texto – o papel do texto – é o quinto personagem. Ou sugestão dele.)

1 - O tango que dança numa taça de vinho

Letícia – Não foi isso o que combinamos. Não era isso o que estava escrito nas rubricas.

Débora – Você sabe como são os homens quando envelhecem...

Letícia – Não está escrito assim, como você disse...

Débora – Todos ficam insuportáveis. Nenhum melhora com o passar do tempo. Nenhum...

Letícia – Você pode, pelo menos, prestar atenção nas rubricas?

Débora – Se fossem como os vinhos... Ou como um velho tango...

Letícia – Tenho que repetir? Não foi isso o combinado antes. Nem é isso o que o roteiro aponta. As rubricas, por favor, preste atenção nas rubricas pelo menos!

Débora – Certos vinhos descem como se fossem um tango aveludado, dos fortes, antigos, inesquecíveis em seus toques de madeira envelhecida, do piso onde bailaram tantas almas inquietas.

Letícia – É assim? É assim que quer me levar para dentro de sua história?

Débora – Aquele tango que ficou preso entre as paredes cor de malva, a fez surgir entre a fumaça de tabacos intragáveis. Seu vestido era bordô, intenso. Na taça encardida de muitas mãos e bocas, ele escorreu lento. O tempo não o fizera se acomodar em intenções boas. Não. Era uma presença que diluía todas as atenções. Cada olhar era um gole lento. Cada passo, quase um engasgo. Cada volta, o bordô, que rolava decidido entre as bordas do copo, naquela esfumaçada sala de tantos pecados, marcava sua presença.

Juan – Estou olhando para o que você escreveu e quase não me contenho. Tenho que chorar. Ou tenho que rir? Não, não me leve a mal. Por favor, entenda...

Pedro – Leio o que você escreveu e tenho tantas dúvidas. Certas palavras não me soam bem. Soam muito mal, se quer saber. Muito mal. Mas estão escritas no seu idioma. Não no meu. Portanto...

Débora – Certas mudanças não cairiam mal. Mas...

Letícia – Ainda quer que eu nada entenda?

Juan – Ela não devia ter feito a pergunta. Entende isso?

Pedro – Mas eu não sei o que entender com o que foi dito... Tem algo estranho nas suas falas. Parece ser um código. Percebe?

Débora – Mas a cor de vinho tinha que ter também o gosto do vinho que tanto tempo esperou para ser degustado? Não era apenas para ser apreciado com o olhar? No máximo pelo seu olfato?

Letícia – É muito delicado acompanhar cada linha. Cada surpresa que não foi criada antes, mas que aparece diante de suas reações. Você tem noção do que disse Clarice Lispector? Ela disse: Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.

Juan – É interessante isso. Reconheço. Mas aqui há outro contexto e Elsa teria dito de outro modo. Se fosse dito por Patrícia, então, teria outros contornos poéticos. Você sabe. As mulheres sempre podem surpreender quando dizem assim, quando está aparentemente claro.  Mas...

Pedro – Isso tudo me intriga. Esmagar as entrelinhas com palavras. Seria por esse motivo que os autores dão mais espaço entre as frases quando devem colocar entre elas, as tais rubricas? Não é hora de divagar e tenho que tocar em frente. Não dá, agora, neste momento, para parar. Tenho um prazo para cumprir. Você sabe do que estou falando. O pessoal que redigiu o edital não costuma dar prazo para bobagens, devaneios. O tempo exige pressa. E pressiona o espaço aqui do seu texto, percebe?

Letícia – De novo o que aparece aqui no meu roteiro não é seguido por você. Eu reforço: pelo menos acentue o que diz as rubricas. Pode ser?

Débora – Eu tinha que me despir daquela sufocante pele cor de vinho. A cor já me deixava embriagada. É isso mesmo! Embriagada.

Letícia – Uma luz ampla, irrestrita, surge. Não forte. Ela vem devagar, mostrando todos nós – digo – todos vocês ao mesmo tempo.

(...)