quarta-feira, 7 de abril de 2010

Da palavra não dita à palavra mal dita

"Você acha que eu me prestaria a tocá-la com meu dedo?"

Três pessoas discutem um depoimento que foi dado há tempos. Matheus e sua chefe, a Anália, querem que Ricardo repita, integralmente, o que dissera no depoimento. Ele se nega a repetir, a relembrar o que disse. Afirma que do que disse não vai retirar nada. Assim, quer que prevaleça sua primeira palavra.

Esse é o texto que escrevi esta semana e que é mais um texto onde a tal "palavra não dita" vai até a "palavra mal dita", ou explicando, a palavra que não se diz vai até, dependendo das circunstâncias, a palavra dita de um jeito equivocado, errado, dita de um modo incorreto, errado, com vício ou, indo para o popular, uma "merda de palavra".

O texto integral "Da Palavra Não Dita à Palavra Mal Dita", é só cliclar no título e ler em PDF.

Aqui, uma parte do diálogo. E algumas considerações sobre o que foi dito, as vozes que foram ouvidas.

(...)

Matheus – Você e os critérios, de novo? Condição é critério? Critério é regra? Regra é condição? Tudo parece convergir para um só ponto. Aceitar ou não. Ficou claro?

Ricardo – Não é critério o que estamos discutindo. Eu falava em vozes. Há um imenso espectro de vozes que podem surgir dentro de um pensamento, de uma ação. Se há uma voz, há uma emissão. Se há emissão, só é válido tendo alguém para receber. A voz não pode se calar apenas porque alguém não a quer ouvir. Alguém, em algum tempo, em algum lugar vai ouvir o que possa ter ficado perdido no ar, no tempo, no espaço...

Anália – Você vem até aqui para justificar as vozes que você se apropria para justificar o que disse, o que tem dito, nos últimos tempos... Não é esse o critério. Acho que deixamos bem claro isso. Não usar a voz do outro, nunca. É a regra, é o critério, é a condição que não se pode burlar, nem alterar.

Ricardo – Essa condição, que vocês chamam de critério eu desconhecia. Quando falo não falo por mim só. Não está em mim essa condição de ser único. De ser uma só voz. Um só. Sou múltiplo. Ampliam-se em mim todos os sentidos. Além das vozes. Estou tentando, desde o início do processo deixar bem claro que não falo apenas pelo que eu falo. Pela necessidade que se impõe. Eu falo pelo que outras vozes precisam falar. Não é tom de voz, nem é timbre, nem é emissão, nem é meramente sotaque ou vício de linguagem. Eu falo de algo mais profundo e que vem de uma consciência. Uma latente consciência que se soma a outra consciência latente. Uma que se esfrega na outra. Outra que alavanca outra, que provoca sinergia, confronto. Que faz outra eclodir, nascer. Que bate, que recebe o baque de volta, que retorna com mais força e solta, salta, pula, amplia, vai além, explode em outras vozes, que alcançam outra voz, mais alta, mais perceptível. Uma que provoca, que sai, outra que brota, que se soma, que se amplia, que se torna uníssona para, lá na frente, se fragmentar e rebrotar, re-somar, re-ampliar, re-virar, re-transformar, virar um duo, depois, um quarteto, um octeto, uma orquestra, um coral imenso, vários corais, várias orquestras, na sinfonia da voz primeira, do grito primitivo. Daquele eu que gritou de dor, mais adiante vai gritar mais forte é de prazer, de um prazer imenso de poder ser ouvido, sem interferências, sem pré-condições, sem regras, nem critérios, nem nada que atrapalhe que imponha barreira, que prenda, que estanque, que confunda, que afunde, que aprisione, que guarde, que proteja, que salve, que encarcere numa gravação ou na forma mais primitiva de eco ou de reverberação atonal... Não, as vozes não nascem das palavras, nem as palavras nascem das vozes. A voz é palavra quando ela é sentimento, é razão. A voz é sentimento quando é palavra e palavra ouvida, que se possa ouvir. Voz é isso. Deixem as vozes serem ouvidas, não aprisionem as vozes, as razões e os sentimentos nos tais critérios que não estão claros, está bem?

(...)

Anália – Ficar se lamentando não é o que eu esperava de você...

Matheus – Mas as promessas...

Anália – Você acreditou nelas?

Matheus – Não eram de verdade?

Anália – Quanta ingenuidade... Assim pode parecer que você é um idiota.

Matheus – Mas ingênuo posso ser. Idiota, jamais!

Anália – Não aparente, então. Segure sua onda, rapaz!

Matheus – Eu pensei...

Anália – Eu já havia dito antes. Você não foi contratado para pensar. Está fora de cogitação qualquer ideia que possa sair dessa cabecinha de melão...

Matheus – Sinto-me traído. Enganado. Parece que você me usou e que tudo o que fez foi de caso pensado.

Anália – Mas eu só faço coisas pensando muito bem cada centímetro do caminho que teria que percorrer.

Matheus – Eu era um simples objeto em tudo isso? Um instrumento para você usar nos momentos certos?

(...)


Não fugindo da luta

“Não tenho medo de lutar, mas temo as regras que não conheço.”

Fala do personagem O CLIENTE em “Na Solidão dos Campos de Algodão”, de Bernard-Marie Koltès

domingo, 4 de abril de 2010

Quando acertei com a agenda errada

Lembra-te que és mortal!


No ano passado, em abril, recebi um convite do Andrew Knoll para assistir a exibição do curta-metragem “Com as próprias mãos” do Aly Muritiba, na loja das Livrarias Curitiba do Shopping Estação. Aconteceria, depois, um bate-papo com o diretor. O convite chegou dia 28 e a apresentação seria naquela mesma noite. Fui para lá curioso, pois queria assistir ao filme no qual o Andrew fazia um dos personagens. Cheguei no horário e percebi, no entanto, que nada estava programado para uma exibição de vídeo.

Eu acabara de iniciar minha participação na Oficina de Dramaturgia com o Roberto Alvim. Era mais do que normal eu me interessar por assistir ao tal curta, ter oportunidade de conhecer seu diretor e, também, prestigiar o Andrew, o ator que integrava a mesma oficina, só que na turma da noite. Além de teatro, eu também gosto de cinema. Gosto de ler roteiros de cinema, de escrever também. Teatro e cinema. Coisas em comum, com textos, com idéias. Com vontade e coragem.

Discretamente conversei com uma das atendentes da livraria. Não? Foi ontem? Sim, o convite chegara com a data errada. Lá havia muita gente, as cadeiras estavam colocadas diante de uma pequena mesa e nela uma conhecida figura – eu sempre o via em programas de televisão - ia iniciar uma palestra. Quem era ele?

Mario Sergio Cortella, o filósofo e doutor em educação, ia falar sobre seu mais novo livro: Qual é a tua obra? Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. Não havia lugar para sentar. Fiquei em pé e me postei atento. A palestra, curta, proferida com humor e inteligência, me cativou. Cortella tem um estilo muito particular de tratar das questões. Solta uma frase e, em seguida, explica a frase, coloca-a num contexto histórico, ilustra-a, dá exemplos, ilumina sua exposição e facilita o entendimento para quem o ouve. Não é porque é filósofo, doutor em educação que ele teria que falar difícil, se fazer distante, inacessível. Cortella é de uma clareza ímpar. Tanto para falar, quanto para escrever as tais “inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética”, o que ele abordou no livro a ser lançado aquela noite.

Se eu tinha ido para a livraria para ver uma coisa, não me frustrei por ter visto outra, completamente diferente. Se eu queria ver um diretor falando sobre sua obra, o curta-metragem onde o colega de oficina de dramaturgia – o Andrew – fazia o personagem torturado, pendurado de cabeça pra baixo por uma mulher ensandecida – com ou sem razão, não sei, a palestra do Cortella foi, digamos assim, um contraponto oportuno para um acerto diante de uma agenda equivocada.

O possível desconforto de, em pé, assistir a uma palestra, me fez prestar mais atenção e me ligar no que o palestrante dizia. Fui, assim, ligando-me mais e mais no que Cortella dizia. Quase ao final, ele contou sobre o que na Roma antiga, os generais vitoriosos, ao retornarem, desfilavam triunfantes e eram ovacionados pelo povo. Os generais eram levados em biga conduzidas por escravos. Eram conduzidos até o Senado. Lá, receberiam a honra maior: uma bandeja de prata com folhas de palmeiras.

Cortella, ao falar sobre essa cerimônia de reconhecimento dos heroicos feitos dos generais romanos, perguntou para os presentes qual era o sinônimo de bandeja. Imediatamente, no fundo da platéia, eu disse: É salva, salva de prata, bandeja de prata. Ele agradeceu e, vendo-me, comentou: Alguém de minha faixa etária – numa alusão aos meus cabelos brancos, meus 60 anos à época. Cortella deve ser uns anos mais novo do que eu, com certeza.

Então falou que, a honraria, a tal bandeja de palmas, que se transformou na expressão salva de palmas, foi substituída, hoje, nas homenagens, pelo que conhecemos como salva de palmas, os aplausos, as duas mãos fazendo aquele som, de batidas ritmadas e fortes, das palmas de nossas mãos, uma contra a outra.

Mas, os generais homenageados com a honra máxima da bandeja de prata com folhas de palmeiras e entregue a eles no Senado romano, não era o mais notável dessa história, dessa tradição. Durante o desfile, sendo ovacionado pelo povo romano, os generais, no desfile na biga, num determinado espaço percorrido – quinhentas jardas – quinhentos passos, um outro escravo, que seguia a pé, subia na biga e soprava no ouvido do general a seguinte frase: “Lembra-te que és mortal” - Memento te mortalem esse. E assim, a cada quinhentos passos, o escravo repetia a frase. Até o cortejo chegar ao Senado.

Muito aplaudido, com uma intensa salva de palmas, Cortella agradeceu e, depois foi receber a homenagem justa que todo escritor deseja. Foi autografar o seu livro, o que estava sendo lançado naquela noite. Comprei um exemplar – acho que custou 15 reais – entrei na fila e fui pegar meu autógrafo.

Quando chegou minha vez, falei que era jornalista, que também morara em Londrina – Cortella morou lá e em outras cidades do interior paranaense como eu na minha infância, adolescência e até os 20 anos – e que gostara da palestra. O autor agradeceu minha participação e, então, disse-me que em todos os lançamentos de seus livros, tem o costume de escrever uma palavra, que repete, naquela ocasião, em todos os autógrafos que dá. Então ele escreveu, assim: Rogério: Coragem! E assinou meu exemplar.

Confesso que o episódio da agenda errada e do acerto em ter assistido a palestra, comprado o livro e conversado com o Mario Sergio Cortella foi, para mim, muito mais que um erro que se transformou num acerto. A palavra que o autor colocou, para mim, no seu autógrafo, tinha que ter algum significado e que isso, devia servir de lição: Qual é a tua obra, Rogério? Foi o que me perguntei.

Dias depois, estudando, lendo tudo o que o Roberto Alvim ia indicando como leitura e como tarefa de comentar e analisar textos dramatúrgicos de vários e distintos autores de renome internacional, a palavra “coragem” do Cortella mexeu comigo. O título do seu livro, também. Qual é mesmo a tua obra, Rogério? Qual é seu objetivo dentro da oficina de dramaturgia? O que pretende realizar? O que vai escrever? O que tem para mostrar? Como vai fazer isso?

Eu havia escrito, meses antes, alguns contos. Há anos venho guardando alguns contos. Na minha pequena biblioteca, porém desfalcada de outros livros importantes que me subtraíram ao longo dos anos, alguns livros, sem que eu me desse conta, também sopravam mensagens aos meus ouvidos. Vários livros. Até a coleção “História da Arte”, de Sheldon Cheney, que me foi presenteada por meu pai, em dezembro de 1964 e na qual, no volume III, ele escreveu outra importante mensagem, que agora eu resgato: “Para meu filho Rogério Otávio, para que sirva de estímulo no futuro” (Paranavaí, 31/12/1964 – Elzeário Santos Viana). Sim, vários livros, sopravam mensagens, desafios, estímulos.

A palavra “coragem” do Cortella foi o estopim. A pólvora acumulada. As experiências, as frustrações, os muitos erros, os poucos acertos, tudo isso me obrigava a colocar para fora, com muita cara de pau, confesso, mas com muita coragem, também, tudo aquilo que estava em mim e que necessitava, com urgência, se transformar, agora por força da minha opção pela dramaturgia, em textos para teatro.

Contando com aguda orientação do Roberto Alvim durante os encontros quinzenais da Oficina de Dramaturgia, não perdi a oportunidade de anotar muito, observar ainda mais, ler com avidez e escrever muito, todos os dias, sem método, sem freios, sem ressalvas, sem medo, sobretudo. Assumi-me corajoso. Com coragem passei a escrever e a me dedicar, com afinco, ao estudo da dramaturgia. As pequenas explosões tiveram início. Idéias estouravam aqui, ali. Todos os dias, estourando.

Hoje, dias antes de completar um ano daquela noite de agenda errada e do acerto que foi ter assistido a palestra do Cortella, apresento o resultado do estímulo que me foi dado pelos livros, pelas mensagens de estímulo, pelas leituras e estudo e, sobretudo, pela comprovação de que querendo, tendo um sonho, nós conseguimos mostrar nossas obras, mesmo pequenas, sem reconhecimento aparente, sem significados para tantos. Hoje, aqui, declaro que de abril de 2009 até agora consegui escrever sete peças de teatro, reescrevi outras duas que eu escrevera em 2003 e 2007, traduzi duas peças teatrais em espanhol – da autora Susana Lastreto, e, também, verti para o português textos teóricos sobre dramaturgia e teatro dos autores de língua castelhana José Sanchis Sinisterra, Gustavo Ott, Nestor Cabalerro e Domingo Ortega.

Qual é a tua obra, Rogério?

Espero que meus onze textos de teatro sejam um começo. Outros textos estão vindo. Com ou sem o estímulo de quem, nos últimos dias, fez com que eu quase desistisse de me ver com potencial para escrever dramaturgia. Não vou desistir do meu sonho. Não vou deixar de lutar e, muito menos, permitir que ocupem um lugar que é meu por direito e pelo que meu esforço e dedicação apresentou como resultado.

Qual é a tua obra?

A minha, embora pequena, eu já sei qual é.

A de vocês, que venham. Estou aberto a conhece-las.