quinta-feira, 24 de março de 2011

Meus quinze degraus

"Infeliz e desesperado aquele que não 
sabe se dirigir a um Leitor futuro"

(Umberto Eco, em Sobre Literatura - Ensaios)

Acostumado no jornalismo com a preparação de pautas para matérias, reportagens, entrevistas, editoriais, levei essa "mania" para minha atividade de "escritor". Assim, em 1997 quando iniciei - e descobri - o gosto de escrever contos, relacionava os temas que eu pretendia escrever e, como se eu cumprisse a obrigação de escrever uma matéria jornalística, ia escrevendo um conto para cada tema previamente desenhado na minha pauta, no meu objetivo, no meu desafio pessoal.

Enquanto escrevia contos, intercalava o estudo de roteiro de cinema, escrevia haikais, fotografava. Neste período escrevi um roteiro cinematográfico, um longa. O teatro aparecia, vez ou outra, na leitura de alguns textos.

Em 2003, quando morava em Salvador, na Bahia, encontrei-me num evento na TV Bahia, com duas atrizes. Elas perguntaram-me se eu já tinha me interessado em escrever para teatro. Interesse eu tinha, respondi. Só não tinha tido oportunidade ou motivação. Foi então que as duas me desafiaram a escrever um texto para teatro, mas devia ser um texto para duas atrizes e, no máximo, um ator. Aceitei o desafio e, em menos de 10 dias eu escrevia meu primeiro texto teatral que tinha o nome de "O medo de te perder". Elas fizeram uma leitura, dias depois, e dias depois eu também deixava a Bahia, retornando para Piracicaba, cidade do interior paulista onde morei e trabalhei como jornalista durante 32 anos. 

O texto ficou guardado e, em 2003, procurei o diretor de teatro Carlos ABC e ele recrutou duas atrizes e um ator para fazerem uma leitura pública do meu texto. Aconteceu no anfiteatro da Casa do Médico em Piracicaba, no final de 2003. Pela primeira vez eu pude ouvir minhas palavras na voz de atores transformados em meus personagens. Foi uma experiência inesquecível. Em 2008 reescrevi o texto e mudei seu título para "Das razões do nosso medo". Foi assim que ele foi registrado na Biblioteca Nacional.

Em abril de 2004, mudei-me para Curitiba. Vim para cá com a finalidade de desenvolver um trabalho em, no máximo oito meses. Mas as coisas tomaram outro rumo e fui ficando, fui ficando. Daqui poucos dias completarei sete anos na capital paranaense. 

O primeiro contato com um texto teatral, as vozes dos atores, os personagens expressando seus medos e temores, na fragilidade de se revelarem a cada palavra, levou-me a ficar mais atento ao que passou a ser meu real interesse: o texto teatral, a dramaturgia. Em 2005, veio a mim a motivação de escrever sobre o circo teatro caipira, a música caipira. Passei a pesquisar e, em pouco tempo começava a escrever o texto "Arco, Tarco ou Verva?". Escrevi um pouco, mas ficou parado. No começo de 2007, retomei o texto e, em duas semanas tinha pronto o musical caipira, inspirado no circo teatro caipira mambembe, uma homenagem a personagens reais e fictícios do universo caipira. Escrevi e finalizei "Arco, Tarco ou Verva? Paixão e Alegria de Um Barbeiro Caipira". Busquei interessados em conhecer meu texto e, tive a iniciativa, com o apoio do Richard Rebello, Wellington Guitti, Michelle Pucci, Enéas Lour, Davi Sartori, Liane Guariente e outros que foram chegando à medida em que a ideia ia se afinando, de elaborar um projeto para a Lei Rouanet. O projeto ficou pronto, foi encaminhado e meses depois, em meados de setembro de 2004, foi aprovado. Na sequência, quando devíamos iniciar, efetivamente a busca de apoiadores, no árduo trabalho de captação, um prazo não foi observado e, em dezembro o projeto que me custou tanto tempo, foi devidamente arquivado. Mas a ideia não morreu, nem minha vontade de produzir o tal musical caipira. O projeto foi enviado, de novo, ao Ministério da Cultura, novamente foi aprovado e está em fase de captação por uma produtora local que tem vários trabalhos executados pela Lei Rouanet.

Quase dois anos se passaram e, continuando a ler muito, pesquisar e estudar teatro, fui levado a me inscrever na Oficina de Dramaturgia patrocinada pelo SESI Paraná. Com certa dificuldade de conseguir uma das vagas remanescentes, finalmente pude participar dos encontros quinzenais com o Roberto Alvim.

O que em mim estava quase que adormecido - o gosto pelo teatro - ressurgiu forte. E, desde abril de 2009 tenho me dedicado a estudar muito, a pesquisar ainda mais, a ler muitos textos, muitos textos, muitos textos mesmo, tudo a que se refere à dramaturgia, teatro, peças, críticas. Foi neste momento que me vali de alguns contos que eu havia escrito desde 1997 e, quando chegou o momento, peguei-os para servirem de argumento, de temas, para o desafio de escrever uma peça de teatro na Oficina com o Roberto Alvim. Assim, nasceu "Manhas, Mutretas e o Escambau", o mundo de um ex técnico de futebol, que sofre do Mal de Alzheimer e que convive, em seu mundo, com lembranças, lembranças e aquele grito de gol preso em sua garganta.

O jornalista, então, pegou e elaborou uma lista de temas, fez uma pauta para peças de teatro que gostaria de escrever. E elas foram nascendo, quase que espontaneamente, numa geração e provocação de ideias que se sucediam. Depois de invadir o mundo solitário do ex técnico de futebol, motivei-me a transformar meu conto sobre um travesti no dia do seu aniversário de 40 anos e assim, nasceu "Daysi", a margarida que escrevia seu nome de um jeito errado com a palavra, com o nome em inglês, para colocar, no seu nome, em primeiro lugar, a palavra "dia". Uma brincadeira com o que acontece na peça no dia em que a personagem Daysi faz 40 anos e desejava, apenas e tão somente, ganhar um bolo de morango com chantili.

Outro conto ensejou, a seguir, "Cinco Cafés e Algumas Gotas de Afeto". Depois veio o registro de minhas observações sobre alguns colegas que comigo participavam da Oficina com o Roberto Alvim (ele próprio, claro), personagens que poderiam ter passado pelo palco do Teatro José Maria Santos, e personagens que poderiam ter vivido emoções tão diversas naquele mesmo espaço quando era uma fábrica de tecido, uma malharia. Foi com esse olhar e esses temas que escrevi "Parent(es)is". No título, uma brincadeira, um jogo com a frase em inglês "parent is", com a palavra parente e com a palavra "parêntesis", quando abrimos um parêntesis numa história para enfiar, nela, outras histórias, outros personagens.

Não parei, nem abri um parêntesis. Melhor dizendo, abri sim, abri um parêntesis nos meus escritos, nos meus temas e fui pesquisar textos de autores de língua espanhola, traduzindo textos teóricos do José Sanchis Sinisterra (sobre Narratologia e A Arte do Monólogo), para, finalmente chegar a dois textos de teatro de Susana Lastreto, autora, professora e atriz argentina que mora em Paris. Assim, traduzi o primeiro texto dela - "Parejas" - e surgiu minha primeiro tradução teatral, "Casais". Susana Lastreto gostou da minha ousadia e, em seguida, acabei traduzindo seu monólogo "Noite bem longe dos Andes ou Diálogo com meu dentista". A troca de e-mails com Susana Lastreto - eu em português e ela em espanhol - me levaram a criar um tema onde um autor brasileiro e uma autora francesa de origem argentina trocam impressões e contam suas histórias que se funde numa história que tem um personagem comum que surge no meio dos movimentos terroristas no Brasil dos anos 60 e 70. Foi com essa temática que escrevi "Eu Avec Você", eu aqui no Brasil, você lá na França. Eu com você no desenvolvimento de uma história que nada tem de verdade, mas que tem muitas características reais.

Não parei por aí e seguindo minha listas de temas, no final de 2009 escrevi "Homem Ambíguo em Torno do Próprio Umbigo", uma brincadeira de livre pensar em torno do umbigo, do umbigo mesmo, do personagem ligado à sua mãe, alguns umbigos que se ligavam não por força da genética, mas da palavra.

Chegou o novo ano arrastando tudo, destruindo tudo, desmanchando montanhas, matando muitas pessoas. Assim, fugindo da lista original de temas, arrisquei-me a escrever "O Solvente da Montanha" que me levou a descobrir uma antiga música do cantor e compositor Benito di Paula, um samba que entrou para o texto como uma profecia do homem mau que não respeita a natureza nem a mulher amada (que pode ser a própria natureza é claro).

Num desafio novo, propus a um grupo teatral de Curitiba a participar com um texto inédito num edital da Fundação Cultural. Assim foi que nasceu "Da Palavra Não Dita à Palavra Mal Dita", um pouco, também, mas sem ser essa a motivação, da minha briga com o Damaceno, o que me jogou para fora da Oficina de Dramaturgia do SESI Paraná, senão com o apoio do Alvim, mas, pelo menos, com sua omissão.

Envolvido com alguns projetos, deixei a escrita teatral de lado, mas, com a proximidade do final do ano peguei a lista de temas, minha pauta de textos teatrais, escrevi "A Arte do Monólogo", uma coleção de monólogos que eu havia escrito como exercícios e que foram dispostos numa peça seguindo o modelo teórico do texto "A Arte do Monólogo" do José Sanchis Sinisterra, o autor espanhol. 

Não deixei o ano de 2010 terminar barato, ele que para mim começou triste, com o cenário das mortes nos morros e montanhas brasileiros, mas, sobretudo, com minha expulsão inapelável do Núcleo de Dramaturgia. Com essa motivação e com a anotação, na referida pauta, de parte de uma frase do Ernesto Sábato, que escrevi o texto "Triste Inventário de Perdas". 

À medida que ia matando alguns temas da pauta de textos teatrais que pretendo escrever - e que já escrevi alguns deles - fui acrescentando outros, para futuros desafios. Emendei, no começo do ano o texto "Na Prisão Dialética do Desejo", resultado de uma pesquisa sobre a natureza e a alma feminina e o que um homem dela pode conjeturar. Nas leituras, caiu em minhas mãos o livro "Os Ratos" do Dyonelio Machado. Pesquisando sobre ratos, li umas entrevistas do Lourenço Mutarelli, o autor do texto que originou o filme "O Cheiro do Ralo". Ralo, ratos, ratos, esgoto, entrevistas... E surgiu, então, minha "Entrevista com o Devorador de Ratos", onde criei o personagem Lourenço Machado que é entrevistado por uma jovem e bonita jornalista e pesquisadora de nome Dionelia Mutarelli. As influências intertextuais se revelando e provocando novas leituras e novos textos. 

Os livros começavam, na minha pequena biblioteca, a conversar entre si, seguindo uma observação de Umberto Eco, em seu livro "Sobre Literatura", um livro de ensaios.

Desde 2009, quando participei de uma oficina de leitura, na Fundação Cultural de Curitiba, com o Márcio Abreu, mostrei a ele minha pauta de temas para futuros trabalhos de teatro. Ele sorriu quando percorreu a lista. Ele tinha um mesmo tema em mente com o trabalho dentro da filosofia do "processo colaborativo". Um trabalho que para ele estava andando. O meu tema, apenas estava sonhado.

Desde, então, e com muita atenção ao que estava escrito na minha pauta, fui abrindo várias frentes de trabalho, fui iniciando vários textos de teatro, mas sempre de olho em um que habitava meu imaginário. Neste período quis dar vazão aos escritos e com o apoio do Douglas Daronco e outros que se juntaram na caminhada, propus para a Casa Hoffmann o projeto de leituras dramáticas, música e dança no evento que ganhou o nome de "Saraus Tardes de Dionísio". Nas leituras conheci muitos atores e atrizes, conheci textos inéditos do Douglas Daronco, da Eliane Karas, da Nana Rodrigues (eles, os três, meus ex-colegas da Oficina de Dramaturgia do Alvim). Foram os primeiros textos a serem incluídos na programação dos Saraus, com a inclusão de um meu, o "Eu Avec Você". O projeto era para ter apenas quatro encontros, quatro saraus. Mas a Casa Hoffmann viu que poderia abrir mais quatro datas, até o final de 2010 e foi assim que convidei a Cynthia Becker, que estava morando em São Paulo na época, logo em seguida e Cláudia Brito, e, depois, por indicação da Eliane Karas, a Ana Johann. As duas primeiras - Cynthia e Cláudia - haviam participado comigo dos encontros com o Alvim. Ana, que trabalha com cinema, havia entrado na segunda turma da Oficina de Dramaturgia e produzia um primeiro texto para teatro e foi desafiada a concluí-lo para a apresentação na Casa Hoffmann. Outro texto lido nos saraus foi um do Enéas Lour.

No começo de 2011 dei início a um texto que caminhou com muita tranquilidade, de forma bem lenta, principalmente porque havia exigido de mim muitas leituras, muita pesquisa. Tudo aquilo que tive que esquecer para, então, com a força da mistura de tantas ideias e informações, transformar em um texto que iria, com certeza, se transformar no meu mais recente trabalho de teatro, mas cujo tema prefiro no momento não revelar.

No intervalo do texto "secreto", recebi três textos da autora, atriz e professora espanhola Gracia Morales (da Universidade de Granada) e em poucos dias traduzi a peça, através de original em espanhol, com o título de "Quince Peldaños", que saíram como "Quinze Degraus". Devo, em breve, iniciar a traduções dos outros dois textos que Gracia Morales me enviou.

Os quinze degraus... Sim, os "Quinze Degraus" de Gracia Morales antecederam meu décimo quinto degrau, o décimo quinto texto meu que escrevi para teatro. O décimo quinto compromisso que firmei comigo mesmo para revelar um pouco do que eu quero realizar no campo da dramaturgia. E esse texto, meu décimo quinto texto autoral, não vou infelizmente revelá-lo ou oferecê-lo para leitura neste momento. Vou guardá-lo um pouco mais antes de expô-lo às leituras e comentários de alguns interessados. O décimo quinto degrau que  eu consegui subir é, na verdade, o décimo oitavo degrau, mas os outros três são os degraus que tenho percorrido paralelamente, pois me levam ao estudo e à leitura de obras de língua espanhola. Meus quinze degraus são os que me levam para estudo e leitura que faço e que continuo a fazer, diariamente, da língua portuguesa. 

Como moro no décimo terceiro andar de um prédio, sei que posso me aventurar a percorrer alguns degraus a mais. Sei que posso. E minha lista de temas, minha pauta continua crescendo e textos já iniciados esperam apenas uma conclusão. O meu próximo passo, degrau acima.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Um pouco sobre Gracia Morales e a peça "Quinze Degraus"

Gracia Morales, a autora de "Quinze Degraus" 

A atriz, autora e professora espanhola Gracia Morales foi duplamente premiada, em 2000, com o Prêmio Marqués de Bradomin e com o Primer Accésit IV - Premio Romero Esteo, na Espanha, pelo seu texto "Quinze Degraus" (Quince Peldaños). No ano seguinte, no Teatro Alhambra, em Granada, onde nasceu e é professora, Gracia Morales viu seu texto ser encenado pelo Centro Andaluz de Teatro (dia 3 de outubro de 2001). 
O prêmio Marqués de Bradomin é um dos principais prêmios dados na Espanha a autores de teatro e, em 1985, premiou o autor e diretor catalão Sergi Belbel, com a peça "Caleidoscópio". Belbel é autor do polêmico texto "Carícias", que virou filme na Espanha e aqui, em Curitiba, em 2009, foi matéria de estudo na oficina de dramaturgia do SESI Paraná, por Roberto Alvim e está sendo ensaiado para ser encenado por um grupo teatral vinculado a uma universidade paranaense ainda este ano.

Quinze Degraus

Em fevereiro divulguei neste blog um curso a distância de dramaturgia que Gracia Morales está orientando a partir de Granada, na Espanha, junto ao CELCIT de Buenos Ayres. Foi através de um primeiro contato com ela que fui conhecer todos os seus trabalhos, sugeri divulgá-los aqui em Curitiba e, se fosse possível, queria traduzi-los. Gracia Morales prontamente enviou-me três dos seus premiados textos e há 10 dias concluí a tradução de "Quinze Degraus".

São estes os personagens de "Quinze Degraus":

ANDRÉS – número 38 A
Quarenta e três anos, casado, administrador de imóveis
Pontuação obtida: 8,75
Destino: Tárheos
Viaja com sua mulher

JÚLIA – número 38 B
Vinte e oito anos, casada, sem profissão
Pontuação obtida: 5,5
Destino: Tárheos
Viaja com seu marido

ELIAS – número 15
Dezenove anos, solteiro, estudante
Pontuação obtida: 7
Destino: Kadmán
Viaja desacompanhado


O cenário

Encontramo-nos em um espaço indeterminado, sem sinais precisos de identidade: nem pretende resultar amável, nem tampouco ameaçador. Há algumas cadeiras metálicas dispostas ao acaso. O mais indubitável é o relógio que desce do teto, assinalando eficazmente cada um dos segundos transcorridos.
Neste lugar se encontram ANDRÉS e JÚLIA. ANDRÉS (quarenta e tantos anos, elegante sem pretender, bem apessoado, roupa confortável com um ligeiro toque de distinção) está sentado em uma das cadeiras, de frente a uma pequena mesa sobre a qual há um tabuleiro de xadrez. JÙLIA (vinte e nove ou trinta anos, com uma leve maquiagem, óculos de sol, sandálias, talvez um vestido leve, com certa sofisticação), está sentada na parte mais alta de uma escada de quinze degraus com a naturalidade própria de quem está há muito tempo ali e sente que esse objeto é uma prolongação de seu próprio corpo. Sustenta um binóculo, o qual pende em seu colo por uma correia; sobre suas pernas vemos um bloco de notas e uma caneta esferográfica. Permanecem quietos, até que o relógio assinale dez horas, em ponto. Então tudo começa. 

(Abaixo alguns diálogos de "Quinze Degraus")

(...)



JÚLIA - (voz em off) – Algumas noites chegam até doze ou treze embarcações. Trazem pessoas descalças, escuras como formigas, arrastando mantas e pequenas trouxas de roupa suja. Os dias de temporal a polícia tem que fazer sua ronda muito cedo, para levar os corpos que o mar trouxe até a beira da praia, antes que os meninos comecem a brincar na areia.

(Júlia abaixa o binóculo)

JÚLIA – Gostaria que fosse escorregadiça.

ANDRÉS – O quê?

JÚLIA – A cidade...

ANDRÉS – Ah... Porém nunca se sabe...

JÚLIA – Talvez tenha muitas torres. (Fecha os olhos) Há pouca luz aqui, não é?

ANDRÉS – Por causa do binóculo.

JÚLIA – Como?

ANDRÉS – Parece que não ficam bem ...

JÚLIA – Não, não... São perfeitos... Daqui tudo é pequeno e distante.

ANDRÉS – Pequeno e distante?

JÚLIA – Sim...

ANDRÉS(Com indiferença) – Inclusive eu...

JÚLIA(olha para ele pela primeira vez. Ele, no entanto, não olha para ela) – Não, Você é diferente.

ANDRÉS – Trouxemos os livros de arqueologia, não é? Em Tárheos talvez valha a pena consultá-los.

JÚLIA – Sempre tem sido diferente... (com certa ansiedade) E eu? Como me vê aí de baixo?

ANDRÉS – Permanece igual.

JÚLIA – Igual desde quando?

ANDRÉS – Como antes.

JÚLIA – Não... Estou mais velha. Você olhou bem para minhas mãos? (olha para elas). Estão ficando enrugadas. E estão repletas de teias de aranha. (pausa) Temos água?

(...)

Quem se interessar pelo texto de "Quinze Degraus" pode solicitá-lo que enviarei no formato PDF através do meu e-mail: rogeriobviana@yahoo.com.br


Serial Cômicos leva ao palco "Amores (re) partidos", de Douglas Daronco

Thadeu Peronne e Mazé Portugal
A companhia de teatro Serial Cômicos apresenta dois textos de Douglas Daronco que foram reunidos na peça "Amores (re) partidos" e que serão apresentados de 6 a 10 de abril no mini auditório do Teatro Guaira, dentro da programação do Festival de Curitiba.

Hoje a "Gazeta do Povo" publicou matéria sobre a peça "Amores (re) partidos" - formada pelos textos "Lapso" (monólogo) e "Teia" - que tem a direção de Thadeu Peronne e as participações dele como ator, Mazé Portugal e Ana Paula Taques.

Vejam a íntegra da matéria no link aqui.

Douglas Daronco

domingo, 20 de março de 2011

Além da palavra e do coração

Comentários abertos sobre “Um erro que vive”, texto teatral de Gustavo Lemos, jornalista e autor de Maringá (PR)

O jogo se faz jogando. Entrar num jogo sem saber quais são suas regras, muitas vezes, pode ser mais que um desafio. Pode ser uma possibilidade de descoberta. Também pode ser um grande engano. Pode ser bom, pode ser um erro. Pode ser tudo. Tudo depende de como aceitamos entrar no jogo e viver o que dele nos será oferecido. E do que deles vamos tirar de proveitoso, de experiência, enfim, de vida. Jogar é viver. E viver é não ter medo de nenhum tipo de jogo. Com ou sem regras conhecidas ou reconhecidas.

No jogo do teatro, o embate inicial quando se pega um texto dramatúrgico para ler pela primeira vez é – na maioria das vezes – de desconforto. Estamos sentados na mesma cadeira confortável e diante da mesma tela do computador onde escrevemos e lemos de tudo um pouco. O objeto que aparece ali, na nossa frente, no entanto, não é algo que nos proporcione facilidades, nem traga, logo de cara, clareza. E o desconforto se acentua quando temos que nos defrontar com o desconhecido. Temos que defrontar esse desconhecimento com o pretenso conhecimento nosso de cada dia. E é aí que o desconforto se amplia e que se configura, queiramos ou não, desafiador. O desafio de um novo jogo que nos apresentam sem regras conhecidas, sem oponentes identificáveis, sem metas estabelecidas, sem truques ou saídas anunciadas previamente. Enfim, entramos num jogo que se jogará dentro de uma sala escura, com muitas foices sendo movimentadas por todos os lados, por cima, por baixo, de lado, no meio. E onde devemos ficar? Neste jogo de “foice no escuro”, aceitar a leitura de um novo texto dramatúrgico tem que ser considerado um ato de coragem. Também de desprendimento. Coisas muito raras, hoje em dia.

Foi assim, surpreso e agradecido, temeroso e confiante ao mesmo tempo em que aceitei não só fazer a leitura do que acho ser o primeiro texto na proposta de Gustavo Lemos para sua participação na Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná, regional Maringá, como também, e principalmente de ir além da leitura panorâmica de seu texto teatral. O que tem o título de “Um erro que vive”.

Por coincidência, esta semana, por força de um trabalho que estou iniciando, voltei a reler alguns livros de memórias e de biografias. Livros sempre interessantes para leituras os que trazem a voz do personagem sendo narrada pelo próprio personagem, como no livro do publicitário Alex Periscinoto, um dos ícones da publicidade brasileira e mundial, que, em meados dos anos 1990 escreveu com Izabel Telles seu livro de memórias que tem o título “Mais vale o que se aprende que o que te ensinam”.

Aqui vale relembrar que a frase que dá título ao livro de Periscinoto é mesmo uma verdade. O que nos ensinam pode viciar, podem induzir a caminhos errados. Ou não. Não tem valor, segundo ele, o que nos ensinaram, mas o que aprendemos. E muitas vezes o aprendizado mais forte se dá pela escolha de um caminho errado. O caminho que se escolhe pelo lado fácil, pelo convencional, pode dar certo, mas dando certo pode ter sido por força do acaso, da sorte, do erro que viveu seu momento de acerto.

Quando erramos ao fazer alguma coisa, erramos por tentarmos acertar. Quando acertamos, acertamos sem perceber que um erro não foi revelado naquele episódio e que o que esconde poderá ser catastrófico para nós no futuro. Mas só vamos saber se o acerto foi mesmo um erro, muito tempo depois. Quando erramos feio, o erro nos ensina uma lição imediata. Fica evidente. Está posto diante de nossa perplexidade, surpresa. De nosso espanto: Nossa! É assim?

E sempre a resposta é: Sim, é assim! Mas pode ser pior!

Então, abatidos, recuamos. Tomamos um pouco mais de ar fresco, respiramos fundo. Antes, claro, poderemos chorar. Ficar indignados. Podemos lamentar: Como fui burro! Como fui burro! E, diante de reações mais ou menos comuns ao que coloquei enxergarmos exatamente a lição que será nosso grande aprendizado. Está lá em nossa cara. Limpa, legítima, real e verdadeiramente exposta para nós. Era assim que eu devia ter feito? Era. Mas era mesmo assim? Era. Mas...

Mas, e sempre há um “mas” em quase tudo, nós poderíamos optar por outros caminhos além daquele que se nos apresenta óbvio. Os caminhos sempre são mais amplos. As saídas sempre são variadas. Apenas temos que aprender a não focar apenas numa alternativa. E, mais que isso, a não olhar apenas para a primeira porta que se abre diante de nós. Alguém já viu como alternativa válida sair pela janela. Sabemos que sempre há muitas portas e janelas nos lugares. Podemos sair, no entanto, pela porta dos fundos. Quando nos impediram de sair pela porta da frente. Sabemos que, impedidos de sair até pela porta dos fundos, nossa alternativa foi aceitar ser defenestrado. E defenestrado é ser jogado janela afora... (já que fenestra é janela em italiano e tem palavra similar em francês).

Mas a questão toda do nosso aprendizado é que, dentro ou fora, cada etapa de nossa experiência, é válida. Com erros, com acertos, é válida. E é muito mais válido se enxergarmos que no nosso acerto podemos refazer o caminho de volta às origens e, daí, sim, avaliarmos passo a passo onde foi que acertamos ao errar e onde foi que errar, acertamos. É um exercício super válido e que recomendo. Tem pessoas que recomendam não olhar para trás. Eu recomendo. Não ficar olhando só para trás, mas, sim recuar um pouco nosso olhar e ver por que raios aquilo que deu certo ontem, hoje deu errado. E porque motivo evidente e que eu não havia percebido antes, meu erro me mostrou um possível caminho para acertos mais freqüentes em ações futuras.

Bem eu falava sobre o Periscinoto e ele, no livro, cita um grande publicitário norte americano que dizia que o “melhor texto que eu faço é aquele de onde eu posso tirar vários títulos para o meu trabalho”.

Gustavo Lemos fez um trabalho de dramaturgia e dele tirou seu título. Está lá, na cena 5, “A” diz:  “Do alto de uma fome explode a flor de dez espinhos com um sorriso de diamante que não lhe sobra nenhum medo. E dessa flor de dez sementes surge um brilho em passarinho com medo de céu, de mar, de poeira. Um medo que o templo não suporta, não suprime e não venera. É desse medo que surge a impossível chance: um erro. Um erro que vive. Vive e sorri por detrás da covardia. O medo da flor é o sorriso do erro covarde.”

Os títulos de uma peça de teatro também poderiam ser tiradas de algumas frases das peças que são escritas. Da peça do Gustavo Lemos, só no parágrafo citado, há outros títulos possíveis. Um que me agrada se tivesse sido escolhido seria o “Sorriso do erro covarde”. Outro, “Flor de dez sementes”.

No seu livro “Ler o teatro contemporâneo”, o autor e teórico francês Jean-Pierre Ryngaert, ensina que devemos ler uma peça de teatro além da lente grande angular. Diz que devemos ler, muitas vezes, trocando de lente. Temos que usar uma lente que aproxime mais da palavra, não só do sentido, do que, rasteiramente, queremos entender logo de cara quando perguntamos: De que se trata essa história?

Ryngaert sugere, então, que mudemos de instrumento óptico. Ao invés da grande angular da máquina fotográfica que nos revelará uma paisagem, um panorama amplo, devemos optar por um instrumento mais preciso e enxergar através de um microscópio. Sim, aquele instrumento que nos permitiria enxergar não a forma de uma palavra, mas, talvez, sua alma.

Em “Um erro que vive”, Gustavo Lemos provoca sensações diferentes no seu texto. Uma, na questão da forma. Os personagens não são definíveis por certas características que antecedem suas falas. São apenas um “A” e um “B”. Na primeira cena, “A” provoca com frases curtas e que, em sua forma, se repetem. “B” é sentencioso, teórico, evangélico. “A” provoca, chama para o jogo. “B” não aceita, foge. E usa de palavras que não são suas para, talvez, justificar sua fuga, seu medo, sua surpresa com o enfrentamento do jogo proposto por “A”. Mais que isso, se surpreende com o que “A” faz, ao pegar um alicate e arrancar os dentes, um a um, juntando-os em forma de um sorriso e o entregando a “B”.

Lembrei-me do texto de Edgard Allan Poe, “Berenice”, onde, depois de morta, seus dentes são arrancados por seu primo, apaixonado pela beleza do seu sorriso. Foi “Berenice” quem assustou e encantou Roberto Alvim, premiado autor e diretor de teatro, que coordena em Curitiba a oficina de Dramaturgia patrocinada pelo SESI Paraná, desde 2009, e que o levou, desde menino a fazer um teatro que não aprecia muito as luzes e prefere utilizar e ser mostrado numa estética da penumbra, do quase apagado, sem luz, só vozes em boa parte de sua premiada produção teatral.

Gustavo Lemos, propõe, na cena 2, uma inversão de papéis entre o que discursa “A” e “B”. Nas primeiras falas, um diálogo rápido, também confrontando entendimentos e sentimentos contraditórios. Na cena 1, ‘B” é sentencioso, evangélico. Na Cena 2, “A” assume esse papel. É ele quem narra mais, enunciando um discurso insano, não evangélico, mas com tendência a ser o discurso de algum pastor louco, ensandecido pelo poder da palavra. Da palavra que pretende ser divina, definitiva, final.

Diz “A”: Falo como fala quem não se ouve. Ando como anda quem não é visto. Mordo com o sorriso prometido e transo com o silêncio de um papelão que mofa, de uma solidão que estanca... Eu construí o templo e posso tocar o tempo. Nas paredes desse templo o monstro desenha com carinho de mãe. “B” parece querer exorcizar algo em “A” quando diz: “Reze quatro vezes ao dia...”

Vem, nas palavras que podem ser cruzadas, alinhadas, anuladas, entrecortadas, sobrepostas, o discurso de “A”. “B” pontua o jogo enunciado por “A” nas palavras que foram ditas por ele mesmo na cena anterior. Como se as palavras fossem repetidas aleatoriamente, não na ordem direta do discurso, mas no discurso indireto do que pode ser ouvido e não entendido por quem possa ser incompetente, ou não, quem sabe?

Estamos na cena 3. “B” quer descobrir, ou quer livrar-se do que não possa ser mais bem entendido por ele, esquivando-se e desculpando-se pelo que é narrado por “A”.

Vem a cena 4. “A” continua a propor um jogo. “B” resiste, foge. Quer manter-se distante, mas, responde querendo trazer certo grau de realidade para o que acontece. E volta a narrar, como se fosse ele um tipo de censor ou alguém que deve impor limites, dirigir, orientar, até cortar o barato do que o outro deseja vivenciar por força do que diz, talvez até, do que faz. Ou provoca.

“A” permanece na ofensiva verbal. Quanto mais fala, menos o seu corpo expressa essa força. Aqui, a fala é o contraponto da atrofia. O que parece claro, fica plano na expressão do corpo. O que reverbera, não move nenhum músculo, a não ser a fala que teima em continuar saindo de um corpo inerte, quase morto.

E o que faz “B” na cena 5? Tenta se justificar. Enfatiza em sua tentativa de se justificar. Ou de ficar de fora, de não se comprometer. Mas, ao mesmo tempo, mostra-se ser responsável por um esforço que não obtém retorno, nem paga, nem salário, só custo mesmo. E custo sem volta.

Diz “A”: Estamos todos presos do lado de fora de um abraço.

É o lado onde “B” quer permanecer. Do lado de fora. Sentindo-se preso no abraço inevitável, mas fazendo todo o esforço possível de suas parcas palavras para não abraçar, para não se comprometer, para livrar sua cara e, para, ao final, livrar-se dos pecados, por ações passadas, do presente e do futuro incerto. Daí ter necessidade de utilizar-se de um discurso sacro, messiânico não no pouco que diz, mas na intenção que não consegue “roubar” ou “tirar” do que diz “A”:

“Por que dos ventos se ouve a mais fina poesia: aquela não escutada e nunca vista. Aquela feita por mortos para os cegos de olhos e os surdos de ouvidos: a profecia do sorriso”.

Na cena final, a 6, do curto texto, “A” prossegue e persegue sua maldição. Quanto mais afronta, provoca, vocifera, grita, diz o que pretende manter o jogo em alta, mais se transforma o dito, não em voz, mas em um pensamento pretensamente querendo ser ação, palavra viva. De ser vivo, de ser recém parido, mas ainda com nuances de ser mal formado ou mal informado de suas imperfeições e de sonhos que talvez não possam vir, sobreviver, sorrir. Contagiar além da palavra, mas pela beleza de ter medo do sorriso que sequer chegou a nascer.

“B” tem “A” nas mãos. E na mão que “A” é balançado, acolhido, aceito, é a mesma mão que não aceita vê-lo chorar. Vê-lo arriscar-se no jogo desconhecido das futuras palavras que, se virem antes, serão alguma coisa. Se virem agora, serão outras. Se não virem, serão o quê?

Quem se dispor a ler e a entender “Um erro que vive” terá a chance de entender o que não foi escrito, mas poderá não ler o que está muito claro. Como diz Ryngaert no título do primeiro capítulo do livro dele que acima citei: “As obscuras clarezas e as incompreensíveis luzes”. O que, afinal, buscamos no teatro? Luz, entendimento? Escuro e incompreensão? Ou luzes na incompreensão e entendimento na escuridão? Cada um que faça sua leitura. E preencha os espaços vazios dessa leitura com as ferramentas que cada um dispõe para entrar no jogo de regras nada claras da disputa que vai muito além da palavra e do coração.

Rogério Viana, 20 de março de 2011, em Curitiba (PR)