quarta-feira, 4 de julho de 2012

Um Eco tardio...

Umberto Eco na ilustração que fiz.
Descobri Umberto Eco muito tardiamente, embora tenha lido seu famoso romance "O nome da rosa", pouco sabia de seu trabalho como ensaísta, como semiólogo. Em 2010, descobri (de novo nas Livrarias Curitiba) seu livro "Sobre a Literatura", com ensaios. É um livro que tenho relido sempre. Quase em cada uma de suas páginas tem um monte de anotações que tenho feito, sempre descobrindo alguma coisa que liga a outra. Quando fui escrever a peça "O dia em que morreu Leminski", fiquei bastante atento a alguns comentários que Eco havia feito na questão das remissões, da intertextualidade, das conversas que os livros, segundo ele, tem entre si nas prateleiras das bibliotecas. O último - e pequeno texto - publicado por Umberto Eco no livro "Sobre a Literatura" (páginas 304 e 305) é o que reproduzo abaixo:

O ESCRITOR E O LEITOR

Porém, não gostaria que estas últimas afirmações encorajassem logo uma outra, comum aos maus escritores: que você escreve apenas para você mesmo. Desconfiem de quem diz isso, é um narcisista desonesto e mendaz.
Só existe uma coisa que se escreve apenas para si mesmo, e é a lista das compras. Serve para lembrar o que você tem que comprar, e quando as compras foram feitas pode ser destruídas, pois não serve para mais ninguém. Qualquer outra coisa que se escreve, se escreve para dizer alguma coisa a alguém.


Tenho me perguntado muitas vezes: escreveria ainda se me dissessem, hoje, que amanhã uma catástrofe cósmica destruirá o universo, de modo que ninguém poderá ler aquilo que hoje escrevo?


Em primeira instância a resposta é não. Por que escrever se ninguém vai poder ler? Em segunda instância, a resposta é sim, mas somente porque nutro a desesperada esperança de que, na catástrofe das galáxias, alguma estrela possa sobreviver e amanhã alguém possa decifrar os meus signos. Então escrever, mesmo na véspera do Apocalipse, ainda teria um sentido.


Só se escreve para um Leitor. Quem diz que escreve apenas para si mesmo não é que minta. É assustadoramente ateu. Até mesmo de um ponto de vista rigorosamente laico.


Infeliz e desesperado aquele que não sabe se dirigir a um Leitor futuro.

Umberto Eco

Pois é... Eu tenho escrito bastante. E não faço apenas para manter meus dedos - ainda - ágeis. Nem minha cabeça em movimento no balanço de boas ou de más palavras. Tenho escrito com a mesma esperança de Eco: um dia alguém vai ler e dar uma mínima atenção ao que tenho escrito e registrado um pouco aqui, um pouco ali... neste mundão virtual que existe nas nuvens... E sempre tenho em mente a frase final de Eco: Infeliz e desesperado aquele que não sabe se dirigir a um Leitor futuro.

E para mostrar meu agradecimento ao grande escritor italiano, desenhei-o e mostro aqui, como homenagem a ele.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Um encontro com Júlio Cortázar

Ilustração de Júlio Cortázar que fiz.

Em fevereiro de 2010 traduzi o monólogo "Noite de verão bem longe dos Andes... ou diálogo com meu dentista", da autora argentina Susana Lastreto que mora em Paris. No texto ela relata um encontro que teve com o escritor Júlio Cortázar num teatro periférico de Paris. A ilustração de Cortázar é minha.


(...)

Terra de asilo dos mais brilhantes e eficazes intelectuais e terroristas do planeta. Digno de Shakespeare. E como já era viciada em Shakespeare, decidi fazer teatro, como Shakespeare! E assim foi quando conheci o Júlio (breve pausa) Júlio... sim, esse Júlio, o que escreveu a “A auto estrada do Sul” e os engarrafamentos, o que brincava de “ jogo de amarelinha”... agora não me recordo do seu sobrenome, porém é muito conhecido, vivia bem pertinho daqui.

(pausa)

O palco de um pequeno teatro no Bairro Latino: fazia parte de um elenco teatral ao lado do Negrito Wladimir – um cantor cubano que pode escapar de seu pais com as cordas vocais intactas -, Beba, que passou tanto tempo escondida que já não sabe falar porém é uma mímica genial -, Jean-François, - um francês desertor do Conservatório porque quer fazer teatro corporal e com os versos de Racine não consegue – e João, brasileiro especialista em capoeira e da venda de droga para financiar os espetáculos.

Havíamos montado um espetáculo musical-revolucionário- bilingue. Cantávamos : “Romper as cercas... romper as cercas” e... de repente, numanoite, entra Júlio e se senta na primeira fila, imenso, os olhos como imensas janelas negras, as mãos de gigante, um monumento de livros, de poemas, de cronópios, de jogos de armar, ali sentado na penumbra... Romper as cercas, romper as cercas... Porém, sim é ele... Sim, sim... não, Negro não... não pode ser, sim, sim... que qui? C´este qui, c´est qui, c´est qui, um producteur? Pergunta Jean-François, que sonha em ser um astro de cinema. Que ignorante! Canta, canta, concentre-se ou vai desafinar... Romper as cercas, romper as cercas... É apoteótico! Apó... o quê? Pergunta João. Que analfabeto, parece mentira! O momento, digo o momento é apoteótico, é um monumento da literatura mundial, não se dá conta, aí sentadinho neste teatrinho. E terá pago a entrada? Pergunta Negrito Wladimir, eterno morto de fome. A romper as cercas, romper as cercas.

Espero que não saia em seguida, espero encontrá-lo na saída, concentre-se que poderá desafinar, espero que me veja... porém o que lhe direi, Deus o que lhe direi? Sabe, eu queria ser escritora, me daria um conselho? Parece-me que uso adjetivos em demasia... O que opinará sobre apoteótico? Não estaria um pouco enfático? Romper as cercas, romper as cercas, agradeça imbecil não vê que estão aplaudindo, há quatro gatos pingados, porém aplaudem e teu monumento também aplaude...

Saio correndo do palco, camarim, calça boca de sino, bata indiana, o hall minúsculo do teatro.
Aí está, imenso, a cabeça roçando as nuvens. Não foi embora, está conversando com dois espectadores... de repente... olha para mim. Olha para mim! E sorri. Nas minhas costas surge todo o elenco – João, o Negrito Wladimir, Jean-François, Beba. Se aproximam, o rodeiam, perguntam que tal lhe pareceu a obra musical-revolucionario-bilingue, lhe pedem autógrafos!
Que desavergonhados, que atrevidos! Que desgraça é a timidez, sinto-me uma anã frente a esse corpo maciço que cresce e cresce, ocupa todo o espaço e transborda de outros céus. Eu me perguntei muitas vezes durante o espetáculo se você é de lá e fala perfeita francês ou se é daqui e fala perfeitamente o castelhano, senhorita? Eh? (para ela mesma) Fala comigo? Sorri: me interessa saber... tenho curiosidade... De onde é, de lá ou daqui? (emocionada, não lhe sai a voz e balbucia algo com os lábios, muda) Eu a parabenizo, você é perfeitamente bilingue... (ela agradece, muda) Agradeceu, sorriu, seguiu rua abaixo pela Mouffetard.
Viu só, disse Negrito Wladimir, foi uma boa ideia fazer um espetáculo musical-revolucionário-bilingue. Até temos autógrafos para vender, se a droga está sendo difícil colocá-la para a venda, disse João, prático. E eu contemplo Júlio seguir rua abaixo e fico aquí, paralisada, sem nada dizer, sem ter podido perguntar-lhe se o apoteótico era demasiado enfático, nem como se diz nostalgia em francês, nem em que idioma é menos doloroso viver.

(solo de bandoneon)