sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Teatro das possibilidades – Simultaneidade e fragmentação

(extraído de LER O TEATRO CONTEMPORÂNEO de Jean-Pierre Ryngaert – Martins Fontes – São Paulo – 1998 – pág. 127 – 133)

6 – O teatro das possibilidades

Armand Gatti denomina “teatro das possibilidades” uma dramaturgia em que o espaço-tempo gera simultaneamente várias dimensões e épocas para dar conta do homem que se cria de maneira perpétua. Ele foi um dos que fragmentaram muito cedo a percepção tradicional do tempo e do espaço no teatro. Confrontado com um grupo de garis na cidade de Paris convidados para assistir a uma representação de LA VIE IMAGINAIRE DE LÉ ÉBOUER AUGUSTO G. (A vida imaginária do gari Augusto G.) (Seuil, 1962), ele conta, em uma entrevista publicada no periódico La Nef em 1967:

Como eu lhe perguntasse se as diferentes formas de temporalidade não os tinha incomodado (a mistura dos tempos era, na verdade, o que mais se criticara), eles conversaram e me deram esta resposta, que acho excelente (…): não sabemos se entendemos direito mas é isso: alguns de nós têm televisão, no noticiário nos mostram coisas que aconteceram ontem, outras que aconteceram hoje, em Paris, Moscou, Londres, e tudo isso em sequência: é isso sua temporalidade? - É isso.

Gatti escreve teatro “fragmentado” quando toma consciência de que o teatro burguês não está em condições de dar conta “dos dramas que o homem contemporâneo estava vivendo”, e ele coloca sua tomada de consciência na experiência nos campos de concentração que a linguagem teatral tradicional é incapaz de restitui. Chama o tempo “normal” do teatro de “tempo-duração”, “tempo de relógio”, “tempo-continuidade” e “tempo-fatalidade” na análise que dele fazem Gérard Gozlan e Jean-Louis Pays (Gatti aujourd´hui, Seuil, 1970). A experiência da deportação o leva a refletir sobre a História e inventar para ela um outro tempo teatral:

Se no mesmo instante eItálico ao mesmo tempo podemos dar uma injeção de passado em um presente e partir para o futuro, damos conta de um procedimento muito mais verdadeiro. A sucessão das imagens, dos pensamentos, é a linguagem do homem que é perpetuamente criada.

(entrevista para o periódico Les Lettres Françaises, agosto de 19654, citada por Gozlan e Pays)

Gatti parte, pois, de uma experiência política e humana e não de um capricho formal, para forjar uma ferramenta adaptada a “estas possibilidades que se encontram no homem”, e que ele utilizará na maioria de suas peças, fazendo a mesma análise para o espaço e para o tempo, denunciando a cena única que engendra um teatro “senil” e propondo substituí-la por um espaço que dê conta de um mundo que vive simultaneamente em várias dimensões e épocas:

O fato de criar um tempo-possibilidade levou quase obrigatoriamente a um espaço-possibilidade, isto quer dizer que há um espaço dado que cria todos os espaços possíveis.

Em Auguste G., o personagem central do gari brilha; cinco atores diferentes, com idades de 9 a 46 anos, são responsáveis por ele. A cena se divide em sete lugares que situam momentos do passado, do futuro sonhado por Auguste G. E diferentes momentos do presente. Em Chant public devant deux chaises électriques (Canto público diante de duas cadeiras elétricas – Seuil, 1964), existem cinco espaços-possibilidade representando salas de espetáculo em Lyon, Hamburgo, Turim, Los Angeles e Boston, em que espectadores assistem simultaneamente à representação de uma peça sobre o caso Sacco-Vanzetti, o que dá à execução e suas consequências uma dimensão mundial. Em La passion du général Franco (A Paixão do General Franco – Seuil, 1968), ele inventa trajetos geográficos que estruturam a peça e ilustram a situação do espanhol errante, exilado político ou econômico.

Gatti é um autor pouco encenado hoje, talvez devido ao engajamento político de seu teatro. No entanto, sua dramaturgia teve uma influência duradoura e quase subterrânea na percepção do tempo e do espaço no teatro.

Sobre Armand Gatti, leia mais em http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF02/SP02_040_bezerra.pdf

7 – Aqui e alhures: simultaneidade e fragmentação

O espaço-tempo fragmentado nem sempre tem tais pressupostos ideológicos. Em várias de suas obras, Michel Vinaver imbrica diferentes conversas que prosseguem ao longo de toda uma sequência. Desse modo, ele entrelaça discursos que poderiam advir de espaços-tempo diferentes e faz com que sejam ouvidos simultaneamente. Em La demand d´emploi (A procura de emprego – 1972), “peça em trinta partes”, quatro personagens – Wallace, diretor de recrutamento de executivos, CIVA; Fage; Louise, sua mulher: Nathalie, filha deles – são captados entre uma conversa familiar e a continuação de um questionário de admissão. “Eles estão em cena sem interrupção”, define Vinaver, que, por outro lado, não fornece nenhuma indicação cênica e, principalmente, nenhum indicação espacial. Este é o início da primeira parte, intitulada UM:

(Utilizei aqui o texto na tradução que foi publicada em 2008 em São Paulo e que remeti a todos da Oficina de dramaturgia do SESI Paraná por e-mail)

UM

Wallace – O senhor nasceu no dia 14 de junho de 1927 em Madagascar

Louise – Meu bem

Fage – Sou fisicamente

Wallace – É óbvio

Louise – Que horas são?

Nathalie – Pai não faça isso comigo

Fage – É um ideal que a gente constrói junto quer dizer que não se trabalha só pelo holerite

Louise – Você deveria ter me acordado

Fage – É o que eu ia fazer mas você dormia tão relaxada

Wallace – O que faziam seus pais em Madagascar em 1927?

Fage – Com teu braço dobrado ficava um belo quadro

Nathalie – Se você fizer isso comigo pai

Louise – Não engraxei teus sapatos

Fage – Meu pai era médico militar

Louise – Você saiu com lama nos sapatos

Nathalie – Pai me responde

Fage – Na época estava servindo num quartel em Tananarive

Wallace – Na nossa empresa

Fage – Mas não guardei nenhuma lembrança

Wallace – Nós damos muita importância ao homem

Nessa forma de conversa múltipla, dispomos de poucas indícios espaciais. Podemos imaginar um local privado, íntimo, o da família, e um local externo, social, o do escritório de uma empresa. Nesse caso, Louise e Nathalie estão ligadas ao primeiro, Wallace ao segundo, e Fage garante a conexão, já que é ele que fala nesses dois locais ao mesmo tempo. Nada torna esses lugares realmente indispensáveis à representação. Talvez se trata de um local único, o de Fage ou de sua consciência, atravessado pelos dois discursos. Mas podemos imaginar outras soluções, inclusive uma “instalação” da família na empresa ou uma incrustação do diretor de recrutamento no local privado. Do ponto de vista temporal, podemos imaginar um retorno ao lar após a entrevista (uma parte das réplicas concernem ao período da manhã, antes de Fage sair), mas ainda assim nada é evidente e nada data, por exemplo, as intervenções de Nathalie. Lógica demais na separação dos espaços levaria a um reexame do diálogo entrelaçado. Mas o interesse do texto reside precisamente nos entrechoques das falas, na confrontação entre o discurso profissional que se tornará impiedoso e o enfraquecimento progressivo do discurso familiar.

Em Oeuvres complètes (Obras completas), Vinaver apresenta a peça:

Desempregado há três meses, um diretor de vendas procura um novo emprego. Ao mesmo tempo que se submete a questionários aplicados como máquinas infernais, ele encara sua filha, esquerdista, e sua mulher, que não lida bem com a perda de um modo de vida seguro. Esta trama simples serve de suporte a uma escrita dramática fora de esquadro: ausência de lugar, ruptura de cronologia, encavalamento de motivos e ritmos. Nos espaços misturados, os personagens entrecruzam seus tempos e se fala. Não sem realismo: como sempre, cada um aqui está sozinho com todos e em todos os lugares.

Mesmo que a chave esteja dada (o encavalamento), nada está resolvido do ponto de vista da representação, mas uma coisa é certa: a escolha da forma está, aqui, totalmente ligada ao modo de narrar e àquilo que poderíamos chamar de ideologia da narrativa. A complexidade é inerente à obra e não deve absolutamente ser analisada como uma preocupação voluntária de parecer “moderno”.

O caráter musical da construção do diálogo, observável em Vinaver, é acentuado por Daniel Lemahieu em Viols (Violações – 1978), em que toda relação com um espaço e um tempo identificáveis desaparece em benefício único dos fragmentos do diálogo para duas vozes de mulheres. Nesse caso, a simultaneidade é mais formal, menos ancorada ainda no espaço e no tempo, e o texto se assemelha a um oratório.

Nesses dois exemplos o diálogo prevalece sobre todas as marcas espaço-temporais; o texto em fragmentos atinge limites em que a enunciação é privilegiado, o que torna o trabalho do leitor particularmente delicado por falta de apoios concretos concernentes à situação. É preciso, então, que ele aceite abandonar seu sistema habitual de observação, que desconsidere o que seria da ordem de uma situação tradicional e que se entregue aos fragmentos do diálogo. Esse é o preço para se encontrar a unidade profunda de textos em que as variações do espaço e do tempo são tantas e tão repentinas que é preferível ficar na superfície da fala, no ponto em que o choque das réplicas fragmentárias produz sentido quando se aproximam umas das outras e podem ser compreendidas em sua continuidade.

A grande liberdade dramatúrgica que se instaurou nas relações com o tempo e o espaço é marcada por uma observação pelo presente, qualquer que seja a forma que assumam esses diferentes “presentes”, e por uma desconstrução que embaralha as pistas da narrativa tradicional fundada na unidade e na continuidade. O “aqui e agora” do teatro se torna o cadinho em que o dramaturgo conjuga em todos os tempos os fragmentos de uma realidade complexa, em que os personagens, invadidos pela ubiquidade, viajam no espaço, por intermédio do sonho ou então, mais ainda, pelo trabalho da memória.

Tudo se passa como se um teatro atual voltasse obstinadamente a hoje e como se todos os acontecimentos convocados fossem revividos e julgados novamente à luz do presente. Pode-se ver nisso o indício de uma espécie de imperialismo da consciência contemporânea que ainda se alimenta de acontecimentos passados sob condição de aproveitá-los sem demora, da impaciência de uma época em que a percepção do instante teria primazia sobre o longo trabalho de reconstituição precisa da História. Talvez também se deva buscar na influência da psicanálise esta relação com um presente revisitado pelo passado ou assombrado por ele. De qualquer forma, os acontecimentos colocados no teatro são incansavelmente questionados, confrontados, ligados entre si e como que movidos por uma agitação que transcende as incertezas. Na falta de um ponto de vista ideológico seguro, a narrativa se entrega à dúvida. A consciência é admitida como inteiramente subjetiva quando a busca individual é submetida às vacilações da memória. Ela recorre aos pontos de vista múltiplos e à refração prismática para compreender um mundo instável, considerado entre a ordem e a desordem. A fragmentação não é uma palavra de ordem de cunho modernista, mas na maioria das vezes é a expressão de um questionamento, até mesmo de uma angústia, sobre a verdade dos fatos e seus desdobramentos. Ao passo que Gatti mostrava otimismo ao falar das “possibilidades” dessa ubiquidade narrativa, a desconstrução agiu jogando a responsabilidade para o campo do leitor e submetendo-o, por sua vez, às incertezas da decifração.

Textos citados podem ser acessados no GRUPOS, no link abaixo:

http://groups.google.com.br/group/dramaturgiasesi_tarde/files?upload=1

VOCABULÁRIO

Imbrica = sobrepõe

Ubiquidade = onipresença - onipresente

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