domingo, 12 de junho de 2011

Um continente que serve como metáfora

Cartaz da peça "África... um continente" em cartaz em Buenos Aires
O jornal "Página 12", de Buenos Aires, publicou hoje - edição de domingo, 12 de junho - uma entrevista com a autora Patricia Zangaro sobre sua peça "África... um continente" que está em cartaz no Teatro del Pueblo, na capital argentina.

Antes da peça estrear no mês passado, Patricia Zangaro enviou-me vários de seus textos de teatro e um deles era "África... un continente" que traduzi e que posso enviar aos interessados através do meu e-mail rogeriobviana@yahoo.com.br. Vai ser enviado no formato PDF. Traduzi seis peças de Patricia e estou traduzindo outros dois textos curtos que ela me enviou. Todos estão disponíveis aos interessados.

A entrevista foi feita por Cecilia Hopkins. E pode ser lida aqui na versão original em espanhol.

A entrevista de Patricia Zangaro, aqui, na tradução que fiz:


Um continente que serve como metáfora

Entrevista com Patricia Zangaro
“O teatro não pode transformar a realidade, mas sim nosso olhar”, disse a dramaturga, que nesta peça joga com a idéia de que “em África está a origem da raça humana, mas é a população mais segregada do mundo, mais excluída e rechaçada”.


Por Cecília Hopkins

(jornal Página 12 – Buenos Aires)

Patrícia Zangaro estreou seus primeiros textos no final dos 80. Claro que, anos depois, seria autora de “Auto de Fé... entre bambalinas” e continuava a escrever quando estudava para ser atriz numa época muito difícil em geral, mas complexa em particular, para as expressões artísticas: “Estudava atuação durante a ditadura, um momento muito difícil para manifestar-se em qualquer contexto”, conta a autora a Página 12. E continua: “Comecei a escrever em forma autobiográfica: creio que enquanto o Estado terrorista aniquilava ao país, cada um em segredo reconstruía sua própria história”. Precisamente, aquele texto que começava a escrever e no qual falava de seu pai e do riacho Maldonado, com os anos se foi transformando em “Pascua Rea”, uma das primeiras obras que se fez conhecer Zangaro. A qual, por sua vez, lhe permitiu encontrar um lugar de reconhecimento nas fileiras da nova dramaturgia. Uma vez que soube que a atuação não era a sua (entre outras obras, participou de montagens do Teatro Aberto) integrou o primeiro curso de dramaturgia coordenado por Maurício Kartun, junto a Marta Degracia, Luis Sáez e Susana Poujol. “Gosto de estar no processo de ensaio, mas sempre por trás”, justifica sua decisão a autora. Da mesma maneira participou da montagem de sua obra “África... um continente}”, que sob a direção de Alejandro Ullúa acaba de ser levada à cena no Teatro del Pueblo (avenida Roque Sáenz Peña 943, domingos às 20h00) com atuação de Alejo Ortiz, Stella Matute, Verónica Hassan e Matias De Padova.

Escrita em 2008, “África... um continente” foi concebida, segundo conta Zangaro, “na solidão, sem nenhum estímulo de fora. Às vezes minhas obras surgem de uma imagem inicial ou da necessidade de experimentar com algum procedimento técnico. É depois da estreia quando posso ter uma leitura mais intelectual do material que escrevi”, analisa. A peça se desenvolve no terraço de um prédio de apartamentos. E neste espaço se encontram, sem intenção, um pintor que acaba de cometer um ato de desespero, um jovem que tenta concretizar uma ação violenta e uma mulher desencantada com a relação que mantém com sua filha, personagem que também aparece junto a sua problemática amorosa.

Chama a atenção o espaço escolhido para o encontro dos personagens...

PZ - Está certo, um terraço é um espaço paradoxal, porque é aberto e restrito. O terraço conecta os personagens com o exterior mas eles não podem deixar de estar ali. É um espaço comum com outros, mas estes outros são desconhecidos. Ao escrever a obra tinha a imagem de um terraço visto de cima, com pessoas que pareciam animais de laboratório.

Qual foi o procedimento que investigou durante a escritura de “África...”?

PZ - Queria experimentar com a linguagem como um instrumento que não permite a comunicação. No texto há variações de uma mesma frase assim como também há uma grande austeridade na linguagem. Com os anos, vai-se escrevendo cada vez em uma forma mais despojada. Isto se vê claramente em Griselda Gambaro.

Foi sua referência?

PZ - Foi e continua sendo. É um farol ético e literário para mim. Ela significa risco, experimentação e busca constante. Ter coerência e não conceder nada nem ao êxito nem às modas e não ter mais compromisso com a própria identidade como escritora.

Sempre os personagens dizem não querer envolver-se com histórias alheias.

PZ - Um dos eixos da obra é a tolerância e a dificuldade de ver o outro. A dificuldade de pôr-se no lugar do outro e a compaixão, são questões que tem que ver com a sociedade contemporânea, em geral. Hoje os países centrais têm o poder econômico e armamentista e fazem de seu país um “bunker”. Mas a massa de excluídos é cada vez maior e seu avanço não será contido. Em um país como o nosso, isto de não querer envolver-se com o outro faz lembrar também ao “não se meta”.

Que reflexões sugerem a personagem da mãe?

PZ - Seguimos atravessando por discursos que a realidade superou. Pensemos na psicoanálise, que atribuía a culpa de tudo à família e especialmente à mãe. Hoje existem problemáticas que ultrapassam toda possibilidade de contenção familiar. É impossível não por em dúvida a capacidade de contenção de uma mãe frente aos efeitos da violência urbana, tal como a estamos vivendo.

África... também coloca para se manifestar a enorme brecha que existe entre as gerações.

PZ - A mãe não pode compreender aos jovens. Mas esta impossibilidade de vínculo a afeta profundamente, produz um grande desconforto, perplexidade e desolação. De sua parte, os personagens jovens são muito diferentes entre si. A filha está atravessada pela violência e a necessidade de consumo, mas o amor lhe abree uma perspectiva porque tem um projeto. Mesmo sua escolha (de amar a outra mulher) a faz diferente e isto a problematiza. O rapaz, ao contrário, constrói sua relação de ódio com os negros o motivo da relação que tem com sua mãe.

Ali é quando a palavra “Àfrica” não serve para referir-se a um lugar concreto senão para falar de racismo e intolerância.

PZ - Escolhi falar de África porque ali está a origem da raça humana. E, sem dúvida, é a população mais segregada do mundo, mais excluída e rechaçada. África é a metáfora da assimetria profunda que se vive no mundo. Com seus recursos saqueados, sua população escravizada, África podia desaparecer frente a total indiferença do resto do mundo.

Seu teatro sempre bebe em temas da realidade...

PZ - É o teatro que sai de mim. O teatro não pode transformar a realidade mas sim transformar nosso olhar. Pode fazer visível algo que pode estar oculto pela saturação dos estímulos midiáticos. A mim me parece que a realidade mundial que vivemos é horrorosa e eu não posso me permitir naturalizar esta sensação. Claro que há muitas outras formas de fazer teatro, um feito vivo que não pode ser recolocado por outras tecnologias: o pacto que se estabelece entre ator e o espectador é único.

Como se inscreve sua obra neste panorama?

PZ - A arte é refratária a todo “dever ser”, é um lugar de liberdade. Satisfaz diferentes necessidades. Há um tipo de teatro para divertir que é legítimo, especialmente em tempos sombrios como esses. E outro que fala de outras questões. Eu prefiro o que me alarga minha visão do universo e me dá outros sentidos para a realidade.

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