quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

As dramáticas do deus polissêmico

Com rubor na face, face a face com sua estupefata plateia, ele subiu numa das cadeiras. Depois, num pulo, ficou em pé sobre a mesa. Balançava os braços freneticamente. Apontava com o dedo o que estava escrito em um amontoado de papéis. Batia, depois, com a palma da mão sobre os escritos. O que acabara de ler. Parecia estar em transe. Um transe enfurecido. Louco. Tomado por sentimentos jamais expressos diante deles.
- Discípulos, estou falando com vocês. Se não se orientarem com meus ensinamentos e não resolverem me honrar com sua cega obediência, então eu farei cair sobre vocês uma maldição – hão de maldizer, hão de dizer com má dicção, hão de sofrer todos os infortúnios de uma língua que não será nem entendida, nem aceita, nem reconhecível. E amaldiçoarei tudo o que vocês recebem pelo esforço que fazem. Aliás, já os amaldiçoei porque vocês não acataram minhas ordens nem meus preceitos. Castigarei os seus escritos, os seus textos, as suas ideias e esfregarei na cara de vocês toda essa merda de vocês que foram oferecidas como sacrifício, como resultado do trabalho de conclusão de nosso curso. E, além disso, vocês serão levados para o único lugar onde essa merda toda deve ser jogada: a latrina da história da dramaturgia mundial.
Não se ouvia nada. Apenas o resfolegar do peito arfante dele.
- Eu sou um tipo de Malaquias. Não! Não sou Malaquias falando como se de deus fosse representante. Eu sou o próprio deus! Calem-se as vozes contrárias. Não ousem enfrentar-me! Esfregarei em suas caras toda essa merda de vocês que foram oferecidas como sacrifício!
Numa posição menos propícia a ser vista, ela, timidamente levantou seu dedo.
Ninguém percebera o sutil movimento do dedo daquela menina com aparência frágil, escondida.
Ouviu-se, então, um trovão:
- O que você imagina querer? Não se atreva a me interromper! Você é, como todos aqui, insignificante merda! Merda da merda da merda da merda!
O dedo encolheu.
Mas ledo engano se imaginar que se recolhera por medo. 
Diante do insucesso que a desiludira, machucara, aniquilara, nada mais fazia medo. O que poderia vir não seria inesperado. Ela vencera o medo. E sua ação ela faria com altivez. Não oferecendo o outro lado da face para uma nova porrada. Sabia que face a face, diante da estupefata plateia de cordeirinhos silentes diante do altar do sacrifício, ela poderia, finalmente, dizer o que pensava. Sem temores servis. Com a coragem que pudesse, naquele instante, resgatar. Resgatando não se sabe de onde. Mas dizendo com sua voz de soprano, afinadíssima:
- Não gosto do modo como algumas pessoas gostam de tirar a gente do eixo impondo suas formas diferentes de agir e de pensar!
A voz de trovão ecoou mais forte ainda:
- Não ouse desafiar-me desafinada menina!
Ela, subindo em sua cadeira, ousou por os pés na cadeira do seu assustado colega, e continuou:
- ... todos têm direito a reagir a estímulos positivos e negativos da forma mais conveniente. Quem me conhece sabe que tenho estopim curto. Que não deixo barato. Que não levo desaforo para casa. Nem dou o outro lado da face para bater. Bateu levou. Porrada respondo com porrada! Sempre falo o que sinto, que não abandono uma discussão se meus argumentos são sustentáveis. Agora quem argumenta sou eu. E você, infeliz e pretenso deus polissêmico, feche a sua latrina e ouça. Ouça por todos os orifícios do seu corpo, desse seu corpo informe, desse seu corpo sem órgãos. O que me tira a paz é quando sinto cerceadas as minhas ações, reações. Ouça com atenção. A você eu não dou o direito de apontar, em mim, o que seja direito ou o que não seja direito. Não lhe dou esse direito, pois direito você não tem. Não gosto, não quero, não deixo. Não gosto do que disse. Não quero aceitar o que disse. E não deixo o que disse ser transformado em minha verdade! Pois nem verdade ela é.
O dedo que fora recolhido começou a surgir, lentamente, entre os demais. Um dedo médio. Um dedo agora constituído de uma arrogância. Um dedo delicado, mas firme. Um dedo exibido, fálico. Um dedo potente.
Ela disse:
- Chupe!
Saltou da cadeira. Cuspiu no espaço entre as cadeiras e o altar daquele afrontado e pretenso deus. 
Ao sair, apagou a luz da sala.
Silêncio.
Em seguida, esparsos aplausos.
Depois, alguém exclamou: Bravo! Bravíssimo.


(o texto foi construído, a título de exercício, com um capítulo da Biblia - Malaquias 2: 1-3, e com um comentário feitos pela cantora e professora Cris Lemos em seu mural no Facebook. O texto, no entanto, foi inspirado em um professor de dramaturgia e numa aluna que reluta em seguir suas orientações teóricas, mas teima em assistir suas aulas. Ela não tem coragem de chutar o balde e abandonar as aulas que detesta, mas que, ao mesmo tempo, provocam nela tantos sentimentos contraditórios)

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