terça-feira, 3 de julho de 2012

Um encontro com Júlio Cortázar

Ilustração de Júlio Cortázar que fiz.

Em fevereiro de 2010 traduzi o monólogo "Noite de verão bem longe dos Andes... ou diálogo com meu dentista", da autora argentina Susana Lastreto que mora em Paris. No texto ela relata um encontro que teve com o escritor Júlio Cortázar num teatro periférico de Paris. A ilustração de Cortázar é minha.


(...)

Terra de asilo dos mais brilhantes e eficazes intelectuais e terroristas do planeta. Digno de Shakespeare. E como já era viciada em Shakespeare, decidi fazer teatro, como Shakespeare! E assim foi quando conheci o Júlio (breve pausa) Júlio... sim, esse Júlio, o que escreveu a “A auto estrada do Sul” e os engarrafamentos, o que brincava de “ jogo de amarelinha”... agora não me recordo do seu sobrenome, porém é muito conhecido, vivia bem pertinho daqui.

(pausa)

O palco de um pequeno teatro no Bairro Latino: fazia parte de um elenco teatral ao lado do Negrito Wladimir – um cantor cubano que pode escapar de seu pais com as cordas vocais intactas -, Beba, que passou tanto tempo escondida que já não sabe falar porém é uma mímica genial -, Jean-François, - um francês desertor do Conservatório porque quer fazer teatro corporal e com os versos de Racine não consegue – e João, brasileiro especialista em capoeira e da venda de droga para financiar os espetáculos.

Havíamos montado um espetáculo musical-revolucionário- bilingue. Cantávamos : “Romper as cercas... romper as cercas” e... de repente, numanoite, entra Júlio e se senta na primeira fila, imenso, os olhos como imensas janelas negras, as mãos de gigante, um monumento de livros, de poemas, de cronópios, de jogos de armar, ali sentado na penumbra... Romper as cercas, romper as cercas... Porém, sim é ele... Sim, sim... não, Negro não... não pode ser, sim, sim... que qui? C´este qui, c´est qui, c´est qui, um producteur? Pergunta Jean-François, que sonha em ser um astro de cinema. Que ignorante! Canta, canta, concentre-se ou vai desafinar... Romper as cercas, romper as cercas... É apoteótico! Apó... o quê? Pergunta João. Que analfabeto, parece mentira! O momento, digo o momento é apoteótico, é um monumento da literatura mundial, não se dá conta, aí sentadinho neste teatrinho. E terá pago a entrada? Pergunta Negrito Wladimir, eterno morto de fome. A romper as cercas, romper as cercas.

Espero que não saia em seguida, espero encontrá-lo na saída, concentre-se que poderá desafinar, espero que me veja... porém o que lhe direi, Deus o que lhe direi? Sabe, eu queria ser escritora, me daria um conselho? Parece-me que uso adjetivos em demasia... O que opinará sobre apoteótico? Não estaria um pouco enfático? Romper as cercas, romper as cercas, agradeça imbecil não vê que estão aplaudindo, há quatro gatos pingados, porém aplaudem e teu monumento também aplaude...

Saio correndo do palco, camarim, calça boca de sino, bata indiana, o hall minúsculo do teatro.
Aí está, imenso, a cabeça roçando as nuvens. Não foi embora, está conversando com dois espectadores... de repente... olha para mim. Olha para mim! E sorri. Nas minhas costas surge todo o elenco – João, o Negrito Wladimir, Jean-François, Beba. Se aproximam, o rodeiam, perguntam que tal lhe pareceu a obra musical-revolucionario-bilingue, lhe pedem autógrafos!
Que desavergonhados, que atrevidos! Que desgraça é a timidez, sinto-me uma anã frente a esse corpo maciço que cresce e cresce, ocupa todo o espaço e transborda de outros céus. Eu me perguntei muitas vezes durante o espetáculo se você é de lá e fala perfeita francês ou se é daqui e fala perfeitamente o castelhano, senhorita? Eh? (para ela mesma) Fala comigo? Sorri: me interessa saber... tenho curiosidade... De onde é, de lá ou daqui? (emocionada, não lhe sai a voz e balbucia algo com os lábios, muda) Eu a parabenizo, você é perfeitamente bilingue... (ela agradece, muda) Agradeceu, sorriu, seguiu rua abaixo pela Mouffetard.
Viu só, disse Negrito Wladimir, foi uma boa ideia fazer um espetáculo musical-revolucionário-bilingue. Até temos autógrafos para vender, se a droga está sendo difícil colocá-la para a venda, disse João, prático. E eu contemplo Júlio seguir rua abaixo e fico aquí, paralisada, sem nada dizer, sem ter podido perguntar-lhe se o apoteótico era demasiado enfático, nem como se diz nostalgia em francês, nem em que idioma é menos doloroso viver.

(solo de bandoneon)

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