sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Um trecho da "Entrevista com o devorador de ratos"

Escorre no meio fio uma lama intensa, vermelha. Vermelha da sujeira e do desespero de quem foi arrastado pelas tsunamis do oriente, pelas encostas dos morros que rolaram sem cerimônia para a cerimônia de adeus de tantos inocentes desprotegidos. 
Publico aqui um pequeno trecho da peça "Entrevista com o devorador de ratos". O autor Lourenço Machado  é entrevistado pela jornalista e pesquisadora Dionelia Mutarelli. Ele autor, ela entrevistadora. Ela autora, ele entrevistador. Ele maduro, ela uma jovem que tenta desvendar os mistérios de um autor.

 (...)



Lourenço – Não sei o que deu em minha cabeça aceitar conceder uma entrevista. Eu tinha absoluta certeza que ia dar merda esse nosso encontro. Tinha absoluta certeza. Veja só no que deu!

Dionelia – Ainda tem tempo de desconsiderar sua posição inicial. Mas vai me fazer esta descortesia de cancelar a entrevista?

Lourenço – Se você continuar a estimular pensamentos idiotas e sem sentido, pode ter certeza que cancelarei a entrevista imediatamente. Eu disse: imediatamente.

Dionelia – Você não me parece um homem movido pela coragem. Não me parece mesmo!

Lourenço – Ah, como você gosta de me provocar, não é, menina? Como aprecia levar-me a questionar isso, aquilo outro, não é? Está perdendo seu tempo. Domino a situação. Tenho pleno domínio sobre a situação.

Dionelia – Ah, pensa... pensa só... Tem consciência de que tudo está sobre seu comando, não é? Não comanda nada. Sua consciência não tem valor nenhum, pois não sabe nada sobre nada. Apenas joga com a intuição. E a intuição não existe. Ela é fruto de uma série de coincidências e não leva nada a bom termo. Não leva. Quando apela para ouvir sua consciência, ela aparece viciada, disforme, inquieta e, sobretudo, veja bem, estou afirmando, sobretudo sua consciência aparece irreal. A consciência não é uma capa que vestimos quando temos necessidade de sair na chuva. Pode-se pensar que ela vai livrar nossa roupa de pingos da chuva. Mas ela não livra nada. A chuva é forte. Um temporal está se aproximando. Além da água que cai em todas as direções, tem o vento que é muito forte. Ele vai rasgar qualquer capa... não há guarda chuva que resista. Seu capuz já voou para longe. Escorre no meio fio uma lama intensa, vermelha. Vermelha da sujeira e do desespero de quem foi arrastado pelas tsunamis do oriente, pelas encostas dos morros que rolaram sem cerimônia para a cerimônia de adeus de tantos inocentes desprotegidos. A lama domina tudo e sua consciência não tem proteção eficaz contra a lama, entendeu?

Lourenço – Você não me pega com seus truques...

(...)

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