sábado, 11 de junho de 2011

Entrevista com a autora e o diretor de "África... um continente"

Entrevista com Patricia Zangaro e Alejandro Ullúa sobre
"África... um continente", em cartaz em Buenos Aires.
O jornal argentino "Página 12" publicou ontem, em Buenos Aires, uma entrevista com a autora Patricia Zangaro e com o diretor Alejandro Ullúa, sobre a montagem da peça "África... um continente", que está em cartaz no Teatro Del Pueblo na capital argentina e que foi traduzida por mim antes de sua estreia no mês passado.


A entrevista foi feita pela jornalista Paula Jiménez. E aqui vai a tradução que fiz. A entrevista original, em espanhol, pode ser lida aqui.


Agora somos todos negros

A ação se desenvolve no terraço de um arranha-céu: uma filha lésbica conta, finalmente, para sua mãe que vai deixar o país com sua namorada. Isso é apenas o começo de uma série de desencontros que acontecem em “África... um continente”. A autora Patricia Zangaro e Alejandro Ullúa, o diretor, conversam sobre as razões e a ausência de lógica que os levaram a pensar em diversas metáforas da violência contra o diferente.

Por Paula Jiménez

A partir de que surgiu a escrita desta obra?

PZ – Eu a escrevi em 2008 e surgiu a partir de alguma imagem geradora, mas também de um desafio técnico. Nesta peça me propus uma experimentação em uma linguagem muito lacônica, de muita austeridade, onde, de alguma maneira, tentava por em ação a incomunicabilidade. Mas como acontece no processo de escrita, sempre algo nos é revelado. Neste caso, apareceram quatro personagens em uma metrópole moderna e o espaço aonde se desenvolve a obra é o do terraço, que é um lugar fronteiriço: exterior, mas por outro lado restrito. Um terraço é uma mediação entre a terra e o céu.

Um espaço comum, que não é de ninguém e é de muitos...

PZ – Sim. É um lugar de trânsito. Todos estes elementos foram me provocando a partir de um ponto de vista técnico, mas também apareceram questões que se relacionam a todo meu imaginário desde sempre: a intolerância, a fronteira, a dificuldade de conectar-se com o outro.

AU – Eu, de minha parte, em relação a esse texto, senti que o desafio estava em não decorar as palavras senão expô-las em sua nudez, assumir o risco que implicam estes diálogos e fazê-los explodir, que não permaneçam em um lugar asséptico, intelectual; que o que não está escrito seja como o vapor de uma caldeira, que seja sentido no ar. E que tudo isto levasse o espectador a envolver-se, a perturbar-se, a experimentar certa angústia.

Falam de envolver-se e esta é uma das questões chave que se repetem nos diálogos dos personagens. O que isto significa?

AU – Estamos todos envolvidos, inevitavelmente. Acredito que os personagens estão agarrados em seus próprios infernos e tão ocupados em lidar com a corrosão que os devora que aproximar-se do inferno do outro implicaria cair nele; então se enganam pedindo para não ser envolvidos, quando, em realidade, estão na teia de aranha e a aranha já os está devorando.

PZ – Por outro lado é algo recorrente na sociedade contemporânea e a nós não nos é alheio esta frase: não me envolva, não se meta. Para nós, os argentinos,  tem um sentido extra, o outro não é vivido como alguém com o qual se pode cooperar. Tem muito que ver com as relações na sociedade contemporânea onde se vive o outro com receio, onde há uma impossibilidade de tolerância diante da diversidade.

O personagem do pintor pinta sobre pele humana em lugar de usar papeis ou telas, que foi uma arrepiante prática nazista. Vocês acreditam que estamos dentro do paradigma cultural que ataca com este grau de crueldade a diferença?

PZ – Este personagem é um artista plástico e o questionamento da obra é sobre os limites da arte contemporânea: estas práticas modernas, com as quais se produzem um efeito espetacular, parecem permitir tudo. Inclusive por este tipo de experimentações da arte extrema se pode coisificar o corpo como se fosse um material. Com relação ao que você dizia, a sociedade contemporânea é uma sociedade paradoxal. Se bem por um lado é certo que avançamos com a conquista dos direitos das minorias, por outro a nossa é uma época de enormes intolerâncias, onde um discurso hegemônico categoriza como inimigo aquele que é diferente.

AU – Eu agrego algo ligado ao título da obra: África. Atualmente os testes de todo tipo de drogas por parte dos países do primeiro mundo se fazem nos países africanos e ninguém se importa, somos todos contra, mas esta é uma prática que deixa aprisionado um continente que amanhã poderia se fundir com a Atlântida e o mundo permaneceria o mesmo.

PZ – Por isso a obra tem este nome. É um título errado, porque África é uma metáfora desse outro diverso que a ninguém importa. E por sua vez, África somos todos nós. E da África todos viemos.

Na obra acontece uma série de agressões de um personagem contra outro, e de discriminações. A mãe com a filha porque é lésbica, o rapaz com o negro. Como se o ódio fosse um modo de comunicação...

AU – Na verdade ninguém está isento disto, porque vivemos em uma sociedade que nos leva ao individualismo, à auto preservação. Justamente é o contrário de empreender ações comunitárias. Os quatro personagens arrastam algo, mas, sobretudo, têm um filtro que não lhes permite ver as coisas boas. O fato de que a mãe não percebe que sua filha é lésbica na verdade é porque não a conhece.

Mas a personagem dessa moça tampouco se define como lésbica a si mesma. Lésbica é sua namorada, não ela. Ela não se pode auto definir, a negação começa por ela mesma, à própria condição...

AU – Ela ama.

PZ – Há uma questão de identidade. As personagens não têm nome, são genéricos: o rapaz, a mãe, a filha... A grande cidade também produz um embaçamento sobre as identidades individuais. Uma globalização que exclui o particular.

O terraço, do ponto de vista do tema da discriminação, é um lugar do qual se olha de cima, do alto...

PZ – Olhar de cima faz que tudo o que se vê seja indiferente. As pessoas parecem formigas, não aparece a questão da subjetividade. O que um dos personagens faz é subir ao terraço para ter uma melhor visão para perpetrar um atentado e diz: como lamento não ter formicida. Porque daquela altura não há seres humanos, existe uma subjetivação dos outros.

AU – Há pouco aconteceu a matança (na escola) do Rio de Janeiro, em Carmen de Patagones faz alguns anos, também, na Holanda, antes, em Columbine. Há uma violência que está identificando os vínculos. Vemos todos os dias notícias sobre a violência de gênero.

PZ – A mim me chama muito a atenção essa sociedade. Somos capazes de produzir um fato transcendente como união homoafetiva, mas, por outro lado, criminalizamos o aborto, não temos uma lei de aborto e muitas mulheres de baixa renda morrem todos os dias. Está não é uma preocupação instalada na agenda política. A nossa é uma sociedade que vê crescer a violência de gênero, verificamos mais de 260 mortes de mulheres em um ano. Se observa a coisificação cada vez maior do corpo feminino, o tratamento da mulher na mídia, eu não acredito que se possa celebrar nada. Estas questões só fazem instalar a potencialidade da violência, porque se a mulher é um objetivo, desse objeto se pode abusar, se pode macular, matar, descartar. E isto está legitimado, inclusive dentro de setores progressistas. Já escutei comentários de homens progressistas saudando a Barreda. Parece-me gravíssimo. Esta também é nossa sociedade. Uma sociedade contraditória, paradoxal.

Esta peça parece se aproximar de Marquerite Duras ou com Sarah Kane...


PZ – É curioso ter citado duas mulheres. Acredito que uma das marcas da escritura feminina é que escrevemos com nosso corpo, em nosso corpo.

Existe escritura feminina?

PZ – Existe, sem dúvida, uma escritura feita por mulheres de onde aparece inexoravelmente um olhar feminino, que tem que ver com ser mulher e estar no mundo como mulher. Não acredito claro, em certas subcategorizações da escrita. Às vezes, quando se fala de escrita feminina, é como que se a pretendesse inscrevê-la como um subgênero literário. Como se existisse uma literatura masculina. E, além do mais, como induzindo a uma espécie de restrição temática, então a mulher tem que escrever sobre o lar, o casamento, os filhos. Nossa dramaturga por excelência na Argentina é uma mulher: Griselda Gambaro. Ela escreve sobre suas indagações ao poder, sobre a relação entre o agressor e a vítima, o senhor e o escravo. Nada mais distante dessa restrição que o teatro de Griselda. Neste ponto não acredito que haja uma espécie de circunscrição, mas sim creio que tenha um olhar feminino que se pode advertir e que tenha que ver com a identidade feminina, com nossa história de opressão há milênios pelo discurso patriarcal.

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