domingo, 23 de maio de 2010

"Vida", o haicai e o performático

Um "haiga" - foto com haicai

O jornalista e crítico teatral Valmir Santos publicou em seu site "Teatro Jornal" uma crítica, a meu ver, bem estruturada, sobre o espetáculo "Vida", da CBT e dirigida por Márcio Abreu. O título do texto é tão provocativo quanto quem inspirou "Vida": Haicai performático.

Não vou falar sobre o que seja haicai - para uns haikai, para vários lugares do mundo haiku - mas pego a provocação do Valmir sobre o uso do "haicai" no título da crítica. Uma poesia sintética, de três versos apenas, 17 sílabas poéticas, uma métrica restrita, uma forma muito difícil de construção, não poderia nunca, em hipótese nenhuma, servir de referência para o que "Vida" tem e apresenta. Escrevi "poderia". Não poderia, em sã consciência, não poderia mesmo. Mas a "Vida", que se refere ao universo de Paulo Leminski, sem ser sobre Leminski ou sua obra, pode ser e é mesmo um "haicai" e um "haicai performático" como indicou Valmir sobre o espetáculo de Márcio Abreu, Nadja Naira, Ranieri Gonzales, Giovana Soar e Rodrigo Ferrarini, com a contribuição de outros profissionais talentosos e argutos como Fernando Marés e André Abujamra, esse a quem um dia eu terei que escrever algo para esclarecer uma inusitada pendência entre nós. Minha para com ele, com certeza, mas também, dele para mim. Tudo a seu tempo, porém.

Agora eu trato apenas de "Vida", um inusitado e inesperado haicai performático. E não vou além do que, para mim, agora, até parece óbvio: "Vida" sendo um haikai, Leminski é seu "kigo" e, para mim, um "kigo" que representa toda a dimensão da palavra "outono". Para se entender o que seja "kigo", uma comparação bem didática, rasa mesmo: verão é sol (calor, chuva), primavera é flores (perfume, cores), inverno é frio (agasalho, sopa), outono é Leminski. Mas o "haicai" é "performático", daí o "kigo" outonal daquele polaco fiodaputa ser/ter o contraponto da luz difusa que invoca, do cheiro incômodo que exala, do som estranho que propicia, do gosto acre que sugere, e do toque áspero de um bigode numa boca que emite um estranho lamento da mais profunda alma feminina. Leminski, em vida, escreveu sobre haicai e kigos. Sendo homenageado, Leminski é teatro, é explosão de vida em "Vida" e é o outonal ocaso de quem agora vira seu próprio "kigo". Coisas mesmo dignas de Leminski.

Para quem se interessar no texto crítico de Valmir Santos, um trecho do que ele escreveu sobre "Vida", que esta semana encerrou sua participação no Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.


(...)

Vida é justo um exemplo. Não há Paulo Leminski e há todo o Paulo Leminski em Vida, a visita da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, ao universo do conterrâneo mais varrido das letras paranaenses, para espanto e deleite da cidade – agora é que são eles – e do Brasil.

Assim como a palavra não constitui signo absoluto na escrita do autor de Catatau – ela é sempre entranhada a outras pontes imaginárias, mesmo quando no osso -, o texto do diretor Marcio Abreu e a dramaturgia que assina com as atrizes Giovana Soar e Nadja Naira encerram desvios para alcançar o seu próprio objeto de desejo. Apropriam-se da liberdade de linguagem que caracterizou a existência e a produção literária desse artista para construir uma galáxia particular no palco.

O espírito é libertário, primo do literário. Lançando mão da fábula e da fantasia, Vida ergue-se sem dependência biográfica, sem a promissória estilística do poeta. A Companhia Brasileira de Teatro afirma ter investido mais de ano e meio em pesquisa de campo, bibliografia, experimentos. O espetáculo pode ser lido como um haicai performático em suas estruturas e conteúdos livres e inerentes à cena contemporânea. Descama expectativas dramáticas padrões para incorporar à narrativa procedimentos sintéticos mais evidentes da performance, das artes visuais e da música. E sem jamais ostentá-los. Um projeto afinado à trajetória de quem o move – o luminescente Leminski - e radica o ato criador à condição sem a qual não se respira.


(...)

Para quem ficou curioso sobre "kigo" e "haicai", visite o que escreveu o mestre Edson Kenji Iura.

3 comentários:

  1. Rogério, você clareia sobre as lâminas do kigo, esse consanguíneo do haicai que eu desconhecia. Incrível como aquilo que a crítica tateia, intui, você consegue dar eixo como linguagem e alarga nossa paisagem de outono sobre a arte da literatura, a arte do teatro, sobre a arte. Um abraço e valeu pelo diálogo.

    ResponderExcluir
  2. Rogerio e Valmir, eu aqui na espreita.Um voyeur desse dialogo.

    "Eu escuto, eu estou com você agora. Você esta aqui. Nos estamos aqui.Alguem escapou..."

    Abraços fortes!

    Marcio.

    ResponderExcluir
  3. O pessoal do haicai, talvez, não vá gostar muito da sugestão de Leminski ser kigo de outono. Em VIDA, Leminski é outono. Se hoje, uma borboleta pousar sobre o túmulo dele, não será primavera o kigo, mas um milagre. Ou será que há mesmo borboletas no outono em dia de chuva? Valeu Valmir e Márcio.

    ResponderExcluir