domingo, 20 de março de 2011

Além da palavra e do coração

Comentários abertos sobre “Um erro que vive”, texto teatral de Gustavo Lemos, jornalista e autor de Maringá (PR)

O jogo se faz jogando. Entrar num jogo sem saber quais são suas regras, muitas vezes, pode ser mais que um desafio. Pode ser uma possibilidade de descoberta. Também pode ser um grande engano. Pode ser bom, pode ser um erro. Pode ser tudo. Tudo depende de como aceitamos entrar no jogo e viver o que dele nos será oferecido. E do que deles vamos tirar de proveitoso, de experiência, enfim, de vida. Jogar é viver. E viver é não ter medo de nenhum tipo de jogo. Com ou sem regras conhecidas ou reconhecidas.

No jogo do teatro, o embate inicial quando se pega um texto dramatúrgico para ler pela primeira vez é – na maioria das vezes – de desconforto. Estamos sentados na mesma cadeira confortável e diante da mesma tela do computador onde escrevemos e lemos de tudo um pouco. O objeto que aparece ali, na nossa frente, no entanto, não é algo que nos proporcione facilidades, nem traga, logo de cara, clareza. E o desconforto se acentua quando temos que nos defrontar com o desconhecido. Temos que defrontar esse desconhecimento com o pretenso conhecimento nosso de cada dia. E é aí que o desconforto se amplia e que se configura, queiramos ou não, desafiador. O desafio de um novo jogo que nos apresentam sem regras conhecidas, sem oponentes identificáveis, sem metas estabelecidas, sem truques ou saídas anunciadas previamente. Enfim, entramos num jogo que se jogará dentro de uma sala escura, com muitas foices sendo movimentadas por todos os lados, por cima, por baixo, de lado, no meio. E onde devemos ficar? Neste jogo de “foice no escuro”, aceitar a leitura de um novo texto dramatúrgico tem que ser considerado um ato de coragem. Também de desprendimento. Coisas muito raras, hoje em dia.

Foi assim, surpreso e agradecido, temeroso e confiante ao mesmo tempo em que aceitei não só fazer a leitura do que acho ser o primeiro texto na proposta de Gustavo Lemos para sua participação na Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná, regional Maringá, como também, e principalmente de ir além da leitura panorâmica de seu texto teatral. O que tem o título de “Um erro que vive”.

Por coincidência, esta semana, por força de um trabalho que estou iniciando, voltei a reler alguns livros de memórias e de biografias. Livros sempre interessantes para leituras os que trazem a voz do personagem sendo narrada pelo próprio personagem, como no livro do publicitário Alex Periscinoto, um dos ícones da publicidade brasileira e mundial, que, em meados dos anos 1990 escreveu com Izabel Telles seu livro de memórias que tem o título “Mais vale o que se aprende que o que te ensinam”.

Aqui vale relembrar que a frase que dá título ao livro de Periscinoto é mesmo uma verdade. O que nos ensinam pode viciar, podem induzir a caminhos errados. Ou não. Não tem valor, segundo ele, o que nos ensinaram, mas o que aprendemos. E muitas vezes o aprendizado mais forte se dá pela escolha de um caminho errado. O caminho que se escolhe pelo lado fácil, pelo convencional, pode dar certo, mas dando certo pode ter sido por força do acaso, da sorte, do erro que viveu seu momento de acerto.

Quando erramos ao fazer alguma coisa, erramos por tentarmos acertar. Quando acertamos, acertamos sem perceber que um erro não foi revelado naquele episódio e que o que esconde poderá ser catastrófico para nós no futuro. Mas só vamos saber se o acerto foi mesmo um erro, muito tempo depois. Quando erramos feio, o erro nos ensina uma lição imediata. Fica evidente. Está posto diante de nossa perplexidade, surpresa. De nosso espanto: Nossa! É assim?

E sempre a resposta é: Sim, é assim! Mas pode ser pior!

Então, abatidos, recuamos. Tomamos um pouco mais de ar fresco, respiramos fundo. Antes, claro, poderemos chorar. Ficar indignados. Podemos lamentar: Como fui burro! Como fui burro! E, diante de reações mais ou menos comuns ao que coloquei enxergarmos exatamente a lição que será nosso grande aprendizado. Está lá em nossa cara. Limpa, legítima, real e verdadeiramente exposta para nós. Era assim que eu devia ter feito? Era. Mas era mesmo assim? Era. Mas...

Mas, e sempre há um “mas” em quase tudo, nós poderíamos optar por outros caminhos além daquele que se nos apresenta óbvio. Os caminhos sempre são mais amplos. As saídas sempre são variadas. Apenas temos que aprender a não focar apenas numa alternativa. E, mais que isso, a não olhar apenas para a primeira porta que se abre diante de nós. Alguém já viu como alternativa válida sair pela janela. Sabemos que sempre há muitas portas e janelas nos lugares. Podemos sair, no entanto, pela porta dos fundos. Quando nos impediram de sair pela porta da frente. Sabemos que, impedidos de sair até pela porta dos fundos, nossa alternativa foi aceitar ser defenestrado. E defenestrado é ser jogado janela afora... (já que fenestra é janela em italiano e tem palavra similar em francês).

Mas a questão toda do nosso aprendizado é que, dentro ou fora, cada etapa de nossa experiência, é válida. Com erros, com acertos, é válida. E é muito mais válido se enxergarmos que no nosso acerto podemos refazer o caminho de volta às origens e, daí, sim, avaliarmos passo a passo onde foi que acertamos ao errar e onde foi que errar, acertamos. É um exercício super válido e que recomendo. Tem pessoas que recomendam não olhar para trás. Eu recomendo. Não ficar olhando só para trás, mas, sim recuar um pouco nosso olhar e ver por que raios aquilo que deu certo ontem, hoje deu errado. E porque motivo evidente e que eu não havia percebido antes, meu erro me mostrou um possível caminho para acertos mais freqüentes em ações futuras.

Bem eu falava sobre o Periscinoto e ele, no livro, cita um grande publicitário norte americano que dizia que o “melhor texto que eu faço é aquele de onde eu posso tirar vários títulos para o meu trabalho”.

Gustavo Lemos fez um trabalho de dramaturgia e dele tirou seu título. Está lá, na cena 5, “A” diz:  “Do alto de uma fome explode a flor de dez espinhos com um sorriso de diamante que não lhe sobra nenhum medo. E dessa flor de dez sementes surge um brilho em passarinho com medo de céu, de mar, de poeira. Um medo que o templo não suporta, não suprime e não venera. É desse medo que surge a impossível chance: um erro. Um erro que vive. Vive e sorri por detrás da covardia. O medo da flor é o sorriso do erro covarde.”

Os títulos de uma peça de teatro também poderiam ser tiradas de algumas frases das peças que são escritas. Da peça do Gustavo Lemos, só no parágrafo citado, há outros títulos possíveis. Um que me agrada se tivesse sido escolhido seria o “Sorriso do erro covarde”. Outro, “Flor de dez sementes”.

No seu livro “Ler o teatro contemporâneo”, o autor e teórico francês Jean-Pierre Ryngaert, ensina que devemos ler uma peça de teatro além da lente grande angular. Diz que devemos ler, muitas vezes, trocando de lente. Temos que usar uma lente que aproxime mais da palavra, não só do sentido, do que, rasteiramente, queremos entender logo de cara quando perguntamos: De que se trata essa história?

Ryngaert sugere, então, que mudemos de instrumento óptico. Ao invés da grande angular da máquina fotográfica que nos revelará uma paisagem, um panorama amplo, devemos optar por um instrumento mais preciso e enxergar através de um microscópio. Sim, aquele instrumento que nos permitiria enxergar não a forma de uma palavra, mas, talvez, sua alma.

Em “Um erro que vive”, Gustavo Lemos provoca sensações diferentes no seu texto. Uma, na questão da forma. Os personagens não são definíveis por certas características que antecedem suas falas. São apenas um “A” e um “B”. Na primeira cena, “A” provoca com frases curtas e que, em sua forma, se repetem. “B” é sentencioso, teórico, evangélico. “A” provoca, chama para o jogo. “B” não aceita, foge. E usa de palavras que não são suas para, talvez, justificar sua fuga, seu medo, sua surpresa com o enfrentamento do jogo proposto por “A”. Mais que isso, se surpreende com o que “A” faz, ao pegar um alicate e arrancar os dentes, um a um, juntando-os em forma de um sorriso e o entregando a “B”.

Lembrei-me do texto de Edgard Allan Poe, “Berenice”, onde, depois de morta, seus dentes são arrancados por seu primo, apaixonado pela beleza do seu sorriso. Foi “Berenice” quem assustou e encantou Roberto Alvim, premiado autor e diretor de teatro, que coordena em Curitiba a oficina de Dramaturgia patrocinada pelo SESI Paraná, desde 2009, e que o levou, desde menino a fazer um teatro que não aprecia muito as luzes e prefere utilizar e ser mostrado numa estética da penumbra, do quase apagado, sem luz, só vozes em boa parte de sua premiada produção teatral.

Gustavo Lemos, propõe, na cena 2, uma inversão de papéis entre o que discursa “A” e “B”. Nas primeiras falas, um diálogo rápido, também confrontando entendimentos e sentimentos contraditórios. Na cena 1, ‘B” é sentencioso, evangélico. Na Cena 2, “A” assume esse papel. É ele quem narra mais, enunciando um discurso insano, não evangélico, mas com tendência a ser o discurso de algum pastor louco, ensandecido pelo poder da palavra. Da palavra que pretende ser divina, definitiva, final.

Diz “A”: Falo como fala quem não se ouve. Ando como anda quem não é visto. Mordo com o sorriso prometido e transo com o silêncio de um papelão que mofa, de uma solidão que estanca... Eu construí o templo e posso tocar o tempo. Nas paredes desse templo o monstro desenha com carinho de mãe. “B” parece querer exorcizar algo em “A” quando diz: “Reze quatro vezes ao dia...”

Vem, nas palavras que podem ser cruzadas, alinhadas, anuladas, entrecortadas, sobrepostas, o discurso de “A”. “B” pontua o jogo enunciado por “A” nas palavras que foram ditas por ele mesmo na cena anterior. Como se as palavras fossem repetidas aleatoriamente, não na ordem direta do discurso, mas no discurso indireto do que pode ser ouvido e não entendido por quem possa ser incompetente, ou não, quem sabe?

Estamos na cena 3. “B” quer descobrir, ou quer livrar-se do que não possa ser mais bem entendido por ele, esquivando-se e desculpando-se pelo que é narrado por “A”.

Vem a cena 4. “A” continua a propor um jogo. “B” resiste, foge. Quer manter-se distante, mas, responde querendo trazer certo grau de realidade para o que acontece. E volta a narrar, como se fosse ele um tipo de censor ou alguém que deve impor limites, dirigir, orientar, até cortar o barato do que o outro deseja vivenciar por força do que diz, talvez até, do que faz. Ou provoca.

“A” permanece na ofensiva verbal. Quanto mais fala, menos o seu corpo expressa essa força. Aqui, a fala é o contraponto da atrofia. O que parece claro, fica plano na expressão do corpo. O que reverbera, não move nenhum músculo, a não ser a fala que teima em continuar saindo de um corpo inerte, quase morto.

E o que faz “B” na cena 5? Tenta se justificar. Enfatiza em sua tentativa de se justificar. Ou de ficar de fora, de não se comprometer. Mas, ao mesmo tempo, mostra-se ser responsável por um esforço que não obtém retorno, nem paga, nem salário, só custo mesmo. E custo sem volta.

Diz “A”: Estamos todos presos do lado de fora de um abraço.

É o lado onde “B” quer permanecer. Do lado de fora. Sentindo-se preso no abraço inevitável, mas fazendo todo o esforço possível de suas parcas palavras para não abraçar, para não se comprometer, para livrar sua cara e, para, ao final, livrar-se dos pecados, por ações passadas, do presente e do futuro incerto. Daí ter necessidade de utilizar-se de um discurso sacro, messiânico não no pouco que diz, mas na intenção que não consegue “roubar” ou “tirar” do que diz “A”:

“Por que dos ventos se ouve a mais fina poesia: aquela não escutada e nunca vista. Aquela feita por mortos para os cegos de olhos e os surdos de ouvidos: a profecia do sorriso”.

Na cena final, a 6, do curto texto, “A” prossegue e persegue sua maldição. Quanto mais afronta, provoca, vocifera, grita, diz o que pretende manter o jogo em alta, mais se transforma o dito, não em voz, mas em um pensamento pretensamente querendo ser ação, palavra viva. De ser vivo, de ser recém parido, mas ainda com nuances de ser mal formado ou mal informado de suas imperfeições e de sonhos que talvez não possam vir, sobreviver, sorrir. Contagiar além da palavra, mas pela beleza de ter medo do sorriso que sequer chegou a nascer.

“B” tem “A” nas mãos. E na mão que “A” é balançado, acolhido, aceito, é a mesma mão que não aceita vê-lo chorar. Vê-lo arriscar-se no jogo desconhecido das futuras palavras que, se virem antes, serão alguma coisa. Se virem agora, serão outras. Se não virem, serão o quê?

Quem se dispor a ler e a entender “Um erro que vive” terá a chance de entender o que não foi escrito, mas poderá não ler o que está muito claro. Como diz Ryngaert no título do primeiro capítulo do livro dele que acima citei: “As obscuras clarezas e as incompreensíveis luzes”. O que, afinal, buscamos no teatro? Luz, entendimento? Escuro e incompreensão? Ou luzes na incompreensão e entendimento na escuridão? Cada um que faça sua leitura. E preencha os espaços vazios dessa leitura com as ferramentas que cada um dispõe para entrar no jogo de regras nada claras da disputa que vai muito além da palavra e do coração.

Rogério Viana, 20 de março de 2011, em Curitiba (PR)






Um comentário:

  1. Primeiramente, óbvio, queria agradecer o tempo dispensado para leitura e análise, como disse, muitas portas se fecham quando o que pedimos é "disponibilidade" de um terceiro para acompanhar um trabalho nosso. Sei bem como é isso, mas acredito que essa resistência só reforça um compromisso pessoal de buscar outras (e até novas) alternativas de fazer a mesma coisa: colocar o nosso trabalho à mostra. É um grande desafio que, talvez juntos numa cena alternativa, possamos (não só nós, mas outros tantos) enfrentar.

    Percebi que seu comentário foi muito além de uma análise crítica do jogo proposto, e isso, para o autor (mesmo iniciante como eu) é muito gratificante. De algum modo a nossa criação está linkada, ligada à dezenas de simbolismos e conceitos que temos intrínsecos. Ao ler, o receptor dessa mensagem também fará menção à outros tantos que lhes vêm à mente. Essa interessante miscelânea de sentimentos/expressões é o que faz de cada leitura única e particular. E é justamente dessa percepção que sai uma crítica muito mais justa, sem o objetivo de ser universal ou definitiva, mas com a leveza de uma resposta direta.

    Aproveito para pedir desculpas se não responder religiosamente à todos os pontos abordados por sua crítica, foram inúmeros, ficaria horas aqui para fazer jus, hahahaha.

    Agora sobre o texto: gostei do compromisso em não creditar nenhum juizo de valor à sua impressão. Às vezes na escolha dos adjetivos perdemos um comentário, ou mesmo quem recebe classifica-o de uma forma clichê. A falta de adjetivos dá espaço para a recepção plena do discurso. Talvez esse seja o grande desafio do jornalismo de crítica cultural, que, como estudante de jornalismo pretendo superar. Para isso, seu comentário serviu de grande exemplo.

    Quanto ao jogo proposto em cena pelos personagens A e B, a sua percepção de ação/reação foi sensacional. Não que o texto seja algo tão complexo que só uma visão apurada (de troca de lentes, como você citou) possa esmiuçá-lo. Acredito que cada obra apresenta sim um desafio comunicativo, seja esse desafio proposto de forma consciente ou insconsciente pelo autor. Acho interessante, isso modéstia a parte, quando não temos um cenário definido (problema de família, automatismo humano, incomunicabilidade) porque dessa pintura abstrata conseguimos exergar o que queremos e assim fazer as nossas próprias conclusões.

    Acho essa a grande diferença dos textos do teatro do absurdo, o não tangível. É quase uma viagem em que vamos nos agarrando a significados, mas que no fim, não nos servem de apoio e sim de obstáculo. Pelo menos eu senti isso ao escrever. Gostaria de saber a sua opinião sobre esse tipo de dramaturgia.

    Mais uma vez, agradeço a leitura e comentário. Um texto é só um texto, a resposta que recebemos dele é que o faz importante.
    Ah, e pode ter certeza: lí seus textos e tenho resposta para ele também.

    Abraços.

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