sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Onde eu estava no dia em que Leminski morreu

Flávio Jacobsen nos conta onde estava no dia em Leminski morreu

Sangue de poeta

Eu tinha uns 21 anos. Aviões vinham em minha direção de cinco em cinco minutos. Passavam que passavam raspando o predinho de um andar onde eu estava de janela, digitando em um computador ainda antes do Windows, sem mouse e de tela escura com letrinhas esverdeadas. Eles vinham e era um ai ai ai. Sim, eu pensava em catástrofes assim muito antes do World Trade Center.

Em frente à base aérea, ali no Bacacha. Teco-tecos, jatinhos, zeros japoneses e falcões nazistas na minha imaginação. Toda sorte de aeroplanos que não me deram o azar da colisão, naquele trampinho-frila-da-puta de digitação que eu fazia pra engordar o magro salário que eu ganhava na Imprensa Oficial. A Imprensa era (é ainda) mais ali ladeira abaixo, no Cabral. Lá na Imprensa eu fazia o Nicolau. Mais prazer, menos grana. Mais poesia.

Dava arrepio e o cu fechava a cada avião que passava. Ás o livre. Cigarrinho pra relaxar. Rádio ligado. Estação Primeira. Sem Betina, nota em locução masculina: o poeta Paulo Leminski está precisando de sangue no hospital xis. Puta que o pariu.

Larguei a máquina pensando em ir correndo para o xis salvar o poeta, quando lembrei do xis da questão: um exame anterior havia meses  constatou que eu era mais magro que meu salário. Eu não podia doar sangue.

Fiquei mal. Meu maldito sangue não dava nem pro vampiro, nem pra polaquinha, nem pro poeta. Ainda mais pra um poeta de peso. O desgraçado tinha que ir embora naquele maldito dia no ano da graça de mil novecentos e oitenta e nove. A rima é o centro, porém se move.

A foto na primeira página do jornal fuzilou meus olhos na manhã seguinte. Não havia mais casacos nem cossacos como em Petrogrado aquele dia. Não havia mais distraídos, nem vencedores, nem vencidos. Chegou finalmente pra ele o dia em que tudo que dissesse fosse poesia. Agora é que são elas. Ele se foi.

Acho que engordei uns quinze quilos desde então. Agora dou pra doador (êpa!). Emagreci mais um tanto. Engordei de novo. Amei, casei, descasei. Escrevi, publiquei, gravei. Casei, descasei e amei de novo. Sempre novo, toquei instrumentos e corações. Briguei. Tentei. Atentei. Viajei. Apareci e desapareci mais de metro. Dancei. Bebi, fumei e cheirei. Subi, desci, fui e fiquei. Dele, nunca esqueci. Nunca esquecerei.

Naquele dia, de noite, só chorei. Depois, cantei, cantei, cantei.

Flávio Jacobsen

Um comentário:

  1. Prá quem teve o prazer de conhecer o poeta "Leminski" em vida e tambem conviver, algumas vezes, com o barulho do "bacacha" é evidente que soa maior a lembrança do "poeta" que o conto nos faz recordar!!!!!!!!!!!!!

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