segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Gustavo Bonin publica crítica sobre disco de Chico Buarque

Gustavo Bonin
O músico e compositor Gustavo Bonin escreveu uma crítica sobre o novo disco do Chico Buarque. É um texto muito rico e importante. Assim, reproduzo aqui. Foi publicado no blog "Amálgama".


O grisalho nas canções de Chico Buarque




Chico, disco novo de Chico Buarque lançado no último mês de julho, foi gravado com velhos amigos e personagens ainda mais antigos. O nome do disco é apelido e síntese, piada e tradição condensada, ensaios finais do fonograma na canção brasileira.
Chico sempre teve a capacidade de dizer muito com muito pouco, discursando internamente com a tradição herdada do Estácio, do Tom e das memórias misturadas. É atualmente um compositor que cria canções quase póstumas, como um Brás Cubas, de Machado de Assis, que morto narra o percurso de sua vida, caracterizando e inventando personagens em contato com o presente momento em que nos conta sua história. O que se assemelha aqui à personagem machadiana é o criador Chico e não a pessoa Francisco Buarque, dito assim para alertar que não se embaralhem as imagens no restante do texto.
O disco possui uma tríade, uma suíte de canções com personagens que reencontram o amor, sentimento bastante desgastado na canção brasileira, e por que “outra história de amor esta hora”? Ora! Porque ela está “tipo afim”. O reencontro ou recomeço é bastante sintomático nas canções “Tipo um Baião” (uma baião-canção, segundo Chico), “Se eu soubesse” (a mais jobiniana) e “Essa pequena” (um blues delicado). Em diferentes momentos e estados temporais, são personagens com certa experiência de vida e certo conhecimento do amor, porém todos se deparam com o inevitável, caindo no mesmo truque, na mesma conversa mole outra vez.
Em “Tipo um Baião”, que rouba da linguagem coloquial contemporânea a expressão “tipo”, se configura o significado do título. A música aceita a incerteza contemporânea da expressão e se inicia como uma canção lenta, vira tipo um repente, e o baião se aproxima aos poucos — por isso ela é parecida com um baião, assim como a personagem está tipo a fim de entrar em um romance assim tipo pra vida inteira, ou algo parecido. A canção foi gravada pelos músicos que o acompanham há mais de uma década: Luiz Cláudio Ramos (violonista e arranjador), João Rebouças (pianista), Jorge Helder (baixista) e o próprio Chico voltando a gravar seu violão, que estava empoeirado e arredio por já ter recebido tanta crítica musical. Este formato de grupo é a base de todo o disco, a pedido do próprio compositor, que quer um disco mais de autor, que é a imagem que ele carrega, a de autor de uma obra e não de intérprete. No caso do baião, a bateria é de Jurim Moreira, que é quem faz a maior parte da percussão do disco, e também o guitarrista Frado, que grava uma guitarra diferente: mais efeitos e distorções.
A canção brasileira em si, tratando-se de forma interna, é basicamente melodia harmonizada. Sua profunda subjetividade de discurso musical está contida nos movimentos internos de sua estrutura, sempre relacionada ao movimento de ligação significativa com a letra, que tateia a realidade. Esse disco abstrai muito as orquestrações do arranjo instrumental, condensa os tratamentos musicais no pequeno grupo de músicos.
No início jobiniano de “Se eu soubesse” Thaís Gullin canta a melodia da introdução, Chico o acompanhamento melódico mais grave, seguindo o baixo, e então entra Paulo Sérgio Santos — e como clarinetista eu poderia falar dele dias seguidos sem conseguir, com a licença do exagero, exprimir a minha admiração. É uma canção bem bossa-choro, bem Jobim-canção, choro-canção. Tem finezas sutis no acompanhamento harmônico, tudo bem delicado. É um dueto de um personagem só, e quando os dois cantam juntos, com as divisões melódicas diferentes, a canção se engrandece, essas diferenças nas divisões é que dão a graça ambígua na identificação de gênero na personagem. Thaís Gullin já havia gravado esta canção no seu segundo disco, chamado ôÔÔôôÔôÔ. Agora, o mais impressionante, marca conhecida do autor, é o quanto de subjetivo ele pode dizer com: “larari, lairiri”.
Mas acontece que eu saí por aí
E aí, larari, lairiri
A personagem passa a canção dizendo que se soubesse não teria ido, não teria saído, mas aí então ele sai. É como diria nosso sonhado phatos futebolístico, na propaganda do café Pelé: Aí já viu né?
blues “Essa Pequena” completa a tríade, os três velhos em tempos diferentes e sendo a mesma pessoa. Nessa canção a personagem se conforma com a sua condição e com tranquilidade diz que ao menos o bluesjá valeu a pena. Conta com a participação do violinista francês Nicola Krassik.
“Rubato” é mais uma parceria encantadora com o baixista Jorge Helder. A primeira parceria — “Bolero Blues”, do disco Carioca (2006), que pra mim se transformou na imagem do Chico contemporâneo (autor que, apesar de conversa póstuma, ainda é bom de papo) — é ainda a grande composição dos dois, com alto teor de qualidade e ousadia. Essa nova canção, uma marchinha, é mais acessível, mesmo com a harmonia e melodia bem cromática e tensa, e é a canção com maior instrumentação, lembrando uma bandinha de coreto. O interessante é ver a personagem se contradizer no interior do discurso, porque ora quer que não roubem sua música, ora é o ladrão que rouba a melodia do songbook, muda e retoca os versos, e publica, e coloca na televisão o seu amor, e o mais rápido possível. Assim é de fato o ambiente interno natural do compositor, em que, de tanta influência, ora rouba (ou não) propositalmente, ora é ele o roubado. É também reflexo de um mercado musical no qual todo mundo é musico e compositor, com meios tecnológicos muito eficientes para gravação e publicação, principalmente na internet. Assim surge esta corrida enlouquecedora de autopromoção. Luiz Tatit possui um artigo ótimo sobre este tema.
Na internet foi feita a promoção deste disco, que podia ser encomendado um mês antes do lançamento pelosite. Então o comprador ganhava uma senha e, durante um mês, recebia aos poucos as canções do disco. Também vinham pequenos vídeos sobre as músicas, os músicos e as gravações, parecido com oDesconstrução, DVD do making off do disco Carioca (sem a cena comovente do Jorge Helder). Em um vídeo que tem Chico e João Bosco mostrando sua parceria “Sinhá”, que irá sem comentada mais tarde, Chico fala sobra as suas aventuras pela internet. A gravação era ao vivo para a internet e acontece um problema, a rede congestiona, e o que foi dito no início do vídeo não apareceu, então Chico precisa repetir, e a piada que faz neste momento (06:55) é o ponto crucial para entender a relação entre ele a e internet. É este autor curioso, um pouco desconfortável com as novidades e comentários dos internautas, que se destaca, mas é um autor que também sabe apreciar alguns de seus recursos, como o “meme”.
“Nina”, que é tipo uma valsa-russa, tradicional na estrutura musical, é vestida de dois personagens que se relacionam pela internet, e a relação não passa disso. É uma canção que foi cedida para a cineasta portuguesa Teresa Villaverde para seu novo longa metragem chamado “Cisne”, estreiado em agosto deste ano, filme que também possui músicas de Caymmi e Caetano Veloso. A Canção tem participação do violoncelista Hugo Pilger e do acordeonista Marcos Nimrichter. A russa que conversa com o personagem reflete a imagem que se criou sobre os contatos sociais pela internet, que na maioria dos casos são efêmeros, de muita imaginação e invenção. Há sutilizas interessantes, quando, embora nova, ela diz já ter chorado feito viúva, mas acabou, esqueceu, e também, quando diz que adora viajar, mas não se atreveria a ir tão longe, ir para um país tão distante. Esses trechos lidam com uma disfunção de grandeza que a rede social provoca. A intensidade é usada com pouca experiência de fato, ou de fato por pouca confiança que a internet disponibiliza.
Assim segue, na mesma linha da imaginação, a canção “Barafunda”, um samba de lembranças com mais um velho personagem, vindo direto dos sambas elegantes do Chico, tipo um “Dura na Queda”, do Carioca. É uma desordem de fatos e fotos velhas, amarelecidas e reinventadas, quase o mesmo personagem do seu Leite derramado, romance de 2009. Essa canção fica entre as mais significativas do disco, a confusão e simultaneidade de imagens dentro da narração são movimentos de descrição muito eficientes, e assim o romancista lhe descreve imagens e ideias que vão vestindo a nudez que dentro existia, formando a imagem do autor. A ideia de juntar simultaneidades significativas dentro de uma narração, como aquele gol na gaveta, aquela bicicleta, diamante negro, verde-rosa de Cartola, imagens das tantas musas ou ainda o quanto a vida é bela (de “Dura na queda”, até na melodia), tem papel fundamental para a caracterização do autor Chico contemporâneo.
“Querido Diário”, que inicia o disco, poderia ser diário de Saramago. Outro velho personagem, caminhando, pensando em ter religião, amar uma mulher sem orifício. A canção é tipo uma moda de viola, acompanhada por um quarteto de cordas fantástico, o quarteto Radamés Gnattali, que vem interpretando obras de compositores brasileiros com finezas admiráveis. “Sinhá” termina o disco, parceria com João Bosco, que também é o violão que grava nesta faixa. É uma afro-canção-milonga, nas palavras de João Bosco, e tanto faz o enquadramento dela em alguma forma. Possui um descaminho interessante entre a primeira e a segunda parte. O escravo que, na primeira, afirma não ter visto sinhá no açude, se transforma, na segunda, no autor, no cantor atormentado, herdeiro da mistura de escravos com sinhás.
De certa forma é um disco emaranhado e intrigante no interior das narrações, mas é bem mais leve que o disco anterior do compositor. Mesmo as memórias são mais claras e as novas situações lhe caem bem. As temáticas navegam no interior dos personagens, revelando ora ou outra alguns movimentos contemporâneos, mas sempre no que eles lhe causam, não sobre eles em si

2 comentários:

  1. parabéns pelo belo texto. estou estudando a obra de chico no mestrado e tenho lido muita coisa sobre seu novo disco. um abraço

    ResponderExcluir