quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Um texto que faz dançar

O texto é uma possibilidade, sendo ao mesmo tempo um jogo, uma dança, um desafio.
O texto dança sob o comando dos personagens.

O texto abaixo e outra citação de minha peça foi enviada para um ator e diretor amigo. Ele foi o primeiro a ler o texto e a comentá-lo. Na troca de comentários e informações entre nós, numa espécie de avaliação crítica do texto, eu lhe remeti o seguinte:

Outra questão a ser anotada sobre o texto FALSOS COGNATOS.

O jogo da cena é uma dança. Um tango, sugerido como tema, como fundo musical. Um ensaio de teatro, mas onde é a dança de um texto nas mãos de quatro personagens que se evidencia. O texto é uma intenção. Não um simples fato. O texto é uma possibilidade, sendo ao mesmo tempo um jogo, uma dança, um desafio. O texto dança sob o comando dos personagens. Mas, eles dançam ou dança o texto?

E como dançam os personagens?

Na mudança de papeis. Na construção de passos que fazem, depois repetem ou fazem de outro jeito. A dança das palavras, sempre presente. Na tradução de uma dança que um pode não entender para onde o outro quer levar. Até que limites um parceiro tem o direito de levar o outro. Até que limites?  Nesse jogo, de palavras, de gestos, vai-se descobrindo não mais afinidades, mas e principalmente, diferenças, raivas, mágoas. Pedro admirava Juan, de quem traduzia algo. Mas eles, por fim, deixam explodir algo que os incomodava. Mas, como o texto revela, por ser autor, um é pai do outro (enquanto personagem). E a gente sempre sabe que para um homem conquistar sua condição de homem tem que matar o seu pai. Ou, para um autor, tem que matar, tem que aniquilar quem foi seu mestre. É meio assim, o jogo entre os personagens, mas, no caso, com a presença da voz e da alma feminina, já que tudo está misturado.


(...)


Pedro – Creio que a arrogância dessa afirmação tem um componente de insanidade, sim. Tem mesmo. Logo comparar pessoas tão diferentes.

Juan – A cada vez que eu lia, que relia, eu encontrava erros e os corrigia. Mas não eram erros. Eram visões diferentes que se sobrepunham à ideia original. Daí eu ter feito, ao longo dos últimos quatro minutos, mais de cinco versões diferentes para as últimas cinco páginas escritas. Viu só o volume de texto que tive que escrever? Reescrever, ler, reler? Interpretar, avaliar e, com isso, desvendar outros caminhos e deslindar os espaços, não só do que era físico, mas do que aparecia como possibilidade real para as duas mulheres. Uma prostituta não pode condenar outra. Sempre serão iguais. Iguais em sua intenção de viver. De viver. Que fique bem claro!

Pedro – Por este e outros motivos é que você não tem o direito de exigir que eu faça e refaça cada parte de sua trama com visões diferentes, mas pelo seu prisma. Pelo que lhe é permitido por ser primitivo. Original apenas do seu ponto de vista. Já disse, vezes antes, que iria romper com este olhar condescendente. Que teria quer buscar uma arrogância que a mim não aparece tão natural, para impregnar-me nela e enfrentar os desafios de ter que lhe dizer não. Não vou fazer assim, segundo os seus ditames. Não farei nada para afrontar meus posicionamentos éticos. Dá para você respeitar isso?

Débora – De novo vem a questão de se seguir o caminho reto do que não aparenta retidão de caráter, nem segue o que o autor indicou nas rubricas... Ele quer que as duas se comportem como prostitutas. Eu não sei como se comporta uma prostituta. Você sabe?

Letícia – Já fiz algumas. Já fui várias. Mas todas elas me fizeram entender que desejar o amor e vender o seu corpo não são um bom casamento de intenções. Posso amar de graça. Mas posso cobrar para viver um amor real e verdadeiro. Não, não... não me diga que condena esse pensamento! Não venha com sua ética moralizante e fora de época. E de contexto. Posso dar e não cobrar. E posso cobrar e não dar nunca! Muitas casadas agem assim com certos homens...

Pedro – Viu só como elas não podem se entender? Cada uma dança seu tango diferente. Dissonante. Não com o apuro técnico necessário. Cada uma dessas prostitutas não são dançarinas, são dançarinas que se prostituem. É o que me parece. Ou estou sendo preconceituoso com essa visão?

Débora – Como é irritante ter que ler isso, de novo. De novo, de novo e de novo! Eu amo o tango. Mas não faria dele uma oportunidade para ganhar mais do que olhares, admiração, aplausos... Eu vivo é disso. Não de outras coisas que possam surgir além da minha roupa, do meu aspecto, do que está mais distante do meu corpo e que me leva além do cabaré de paredes cor de malva, de fumaça de tabaco, de cheiros ancestrais e tristeza. E daquele vinho que dançava melhor na mão do bêbado que na do exímio bailarino.

Juan – Acho que você, desta vez, captou um pouco melhor o entendimento da alma daquela primeira mulher.

Pedro – Por que razão você não chama a Débora de Débora?

Juan – Pois ela nunca foi Débora. Ela se chama, na verdade, Patrícia. Mas sempre escreveu como se chamasse Elsa, sendo, em sua certidão de batismo, Letícia. Patrícia é Letícia, no batismo.

Letícia – Não sou prostituta, por favor não confunda o que está muito mal escrito. Não sou prostituta. Sou uma mulher livre que deseja apenas que reconheçam seu desejo de ser feliz. Mesmo por instantes inexpressivos. Instantes sempre são fugazes, eu sei, mas ser fugaz não se relaciona com nenhuma forma de inexpressividade. Está claro?

Débora – Tem certas noites, quando deito em minha cama desacompanhada que o último tango fica bailando comigo até o galo cantar. Até eu ouvir o canto daquela ancestral cotovia. Até eu ouvir a primeira buzina de uma motocicleta que teima em atravessar o cruzamento na contra mão, como se buzinando ela tivesse o direito de fazer tudo errado. Então, o som do tango dita o ritmo da motocicleta que se transforma em minha escolha. Querer ir na contramão, gozando do direito de estar errada, mas me sentindo livre, viva, amparada pelo respirar que deixa meu coração um pouco mais esperançoso.

Pedro – É mesmo um desafio entender o que dizem e o que querem essas duas mulheres...

Juan – Não, nem tanto.

Pedro – Mas elas me deixam confuso.

Juan – Não foi o sentimento que tive quando as encontrei perdidas em anotações de um velho caderno, com letras ilegíveis apontadas por um lápis de grafite macio em traços grossos, na anotação dos destinos de quem ainda estava por vir, mas que já existiam em meus sonhos e nas páginas e mais páginas de livros que tive que ler para tentar encontrar o significado do que seja ser uma dançarina de tango. Ou uma prostituta. Enfim, ser mulher naquelas circunstâncias, naqueles tempos perdidos e que ficaram retidos na retina de um homem que, não muito tempo depois, nada mais conseguia enxergar.

(...)

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