Sem querer que uma nova viagem de leitura seja marcada por um roteiro pré estabelecido e sem
desejar que novas compreensões fiquem presas a modelos, sugiro aqui a leitura de outros textos de teatro a partir das primeiras réplicas, como fez Jean-Pierre Ryngaert em seu livro “Ler o Teatro Contemporâneo”.
Apenas para recapitular o que prescreveu Ryngaert na obra citada: Iremos dedicar-nos a um ato de leitura breve e sintético, limitando-nos estritamente ao fragmento citado. (…) Estudaremos
prioritariamente o sistema de informações e o modo como se instaura o diálogo entre autor e leitor em função de suas respectivas “enciclopédias” … (…) As narrativas se estabelecem em diferentes níveis de informação e com subterfúgios muito contrastantes sem que se possam classificar automaticamente essas diferentes escritas em função de uma estética.
É o que também está sendo proposto, desta vez com uma escolha aleatória de textos que estão ou não em nossas mãos, frutos de uma pesquisa que fiz. Os textos originais e completos, caso interessem, poderão ser fornecidos a pedido.
Vamos aos textos:
BILHETE
Marici Salomão
Montagem patrocinada pelo Centro Cultural Banco do Brasil (2002). Temporadas no
Teatro do Banco do Brasil (22003) e no Centro Cultural São Paulo. Direção: Celso
Frateschi
ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE UMA PEQUENA CIDADE. VÊ-SE APENAS UM
BANCO DE MADEIRA E UM POSTE DE LUZ TREMULANTE. ENTRA
MULHER, CERCA DE 30 ANOS, BEM VESTIDA, MAS COM APARÊNCIA
CANSADA. À CABEÇA, UM CHAPÉU, COM QUE SE DEFENDE DOS
INSETOS. PORTA UM CASACO COMPRIDO E UMA MALETA. DEPOIS DE
LIMPAR O BANCO, SENTA-SE PARA AGUARDAR O TREM. CHECA A HORA
QUE CONSTA NA PASSAGEM E GUARDA-A NO BOLSO DO CASACO.
APESAR DA OSCILAÇÃO DA LUZ, FOLHEIA SEU LIVRO - CARTAS A THÉO -
E TENTA CONCENTRAR-SE NA LEITURA. SUA FIGURA CONTRASTA DE
FORMA GRITANTE COM A INOSPITALIDADE LOCAL. ERGUE OS OLHOS,
SOBRESSALTADA, QUANDO A LUZ DO POSTE AMEAÇA APAGAR.
MULHER (LENDO, DIDATICAMENTE. DEPOIS REPETINDO.) “Esquecer-se de si, realizar
grandes coisas, atingir a generosidade e ultrapassar a vulgaridade na qual se arrasta a
existência de quase todos os indivíduos.”
(SURGE UMA MULHER VELHA, VESTIDA COM ROUPAS PUÍDAS E
ESCURAS. APROXIMA-SE DE MULHER, QUE EM PRINCÍPIO NÃO PERCEBE
SUA PRESENÇA.)
VELHA Posso me sentar um pouco? (MULHER OBSERVA-A) Aí, onde a senhora está.
(SENTANDO-SE) Os outros estão ocupados, de cachorro ou titica de passarinho. Ai,
ai, a velhice é como erva daninha, traiçoeira: primeiro um nozinho aqui, depois outro
mais acima e vai subindo, subindo... Mas a senhora não sabe do que estou falando; na
sua idade o sangue ainda é quente. (PAUSA) Parte hoje, filha?
MULHER Sim, hoje mesmo.
VELHA De volta pra casa?
MULHER Não, ainda não. Infelizmente.
VELHA Por que infelizmente?
MULHER Por nada.
VELHA Não está a passeio?
MULHER Não senhora.
VELHA A trabalho?
MULHER Também não.
VELHA Então vou adivinhar. Quer adivinhar alguma coisa sobre mim?
(…)
BORRACHARIA 24 HS
Ricardo Soares
CENA 1
Três mulheres em uma borracharia de beira de estrada. Uma é a cliente, a outra é a borracheira
Jandira e a última é a garota de pouca roupa do calendário. Barulho de muita chuva, esparsas
trovoadas. Atmosfera úmida, luz baça.
Cliente( olhando o trabalho da borracheira ) - Gozado que a propaganda vive dizendo que esses
pneus radiais não furam nunca... mas só nesse ano é a terceira vez que me deixam na estrada
Borracheira( lidando com o pneu) - Ainda bem que furam né ? se não a gente ia mais é ficar no
prejuízo , tá me entendendo ? íamos ficar na pior, sem serviço.... Até porque , hoje em dia, todo
pneu de carro novo já sai de fábrica radial...
Cliente - E o que é isso ?
Borracheira - Sei explicar não princesa ... mas é uma pegada assim de que o pneu vai murchando
aos poucos tá me entendendo ? não arria assim direto não... não vai pro chão como o peito de umas colega tá me entendendo?
Cliente - Ahhhh tá... mas furar o pneu três vezes num ano que mal começou fica ruim né ???
Borracheira - Podes crer... é muito sim , é muito furo. E esse pregão aqui (mostra o prego ) pegou
seu pneu de jeito ...quase rasga tudo ! olha aí !!!
Cliente - E eu nem imagino onde posso ter passado por cima desse prego. Com a chuva que tá
caindo !!!??? sei lá onde foi isso...
Borracheira - Éééé ... esse ano o inverno tá bravo mesmo ...
Cliente – Eu ouvi que esse ano veio um vento minuano lá do sul ...
Borracheira – Mino o que ????
Cliente- Minuano, do sul...
Borracheira - Ahhhh... uma parada gaúcha ...tô ligada nessas paradas não... aqui é tão longe
princesa, mas tão longe que nem esse mino chega aqui... ele se perde nas quebradas...
(…)
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