Narraturgia
José Sanchis Sinisterra
(Tradução de Rogério Viana)
“Uma desconstrução sempre tem como objetivo revelar a existência de articulações e
fragmentações ocultas dentro das totalidades reconhecidamente monádicas”.
Paulo Le Man
0.
A meu amigo gêmeo, o dramaturgo chileno Marco Antonio de La Parra – ator, professor, psicoanalista, ex-roqueiro e filósofo – o escutei em certa ocasião: “Temos que estar sempre renegociando com o realismo”. Grande verdade. E o mesmo poderia dizer-se com respeito a narrativa: a dramaturgia parece condenada a acontecer sempre, de um modo ou outro, com a narratividade. E ela desde suas mesmas origens até hoje... com algum que outro breve período ou “escola” de mútua ignorância ou aparente desdém.
Esta perene mudança (ligação) entre drama e relato, mimese e diegese que em mim deriva pessoal cristalizou com a fundação do Teatro Fronteiriço (1977) – reaparece hoje como distintivo da mais radiosa modernidade. A amnésia e/ou a ignorância das novas gerações produz a menos estes reflexos, para o qual basta que alguém invente um rótulo atrativo: teatro da não representação, por exemplo: teatro pós dramático, que tampouco está mal. Nada que ver com conceitos teóricos sólidos, como o do “drama rapsódico” de Sarrazac, que tratam de elucidar a genealogia dos novos paradigmas, às vezes com raízes históricas.
Falando, pois, de rótulos, me apresso a declarar que o da Narraturgia, cuja invenção é a mim atribuída, nasceu, provavelmente, de um lapso (ou citação) em algum de meus seminários, no qual, efetivamente, me refiro muito às férteis fronteiras entre narratividade e dramaticidade. E muito especialmente quando me ocupo da “dramaturgia de textos narrativos”, que constitui não apenas um dos meus temas preferidos, senão também um segmento considerável de minha própria prática autoral. Desde a epopéia de Gilgamesh até a obra “Ensaios sobre a Cegueira” de Saramago, passando por relatos e novelas de Joyce, Kafka, Sábato, Cortázar, Melville, Beckett, Borges, Cervantes, etc., a mistura (ou mescla) do discurso narrativo e o discurso dramático fecundou minha reflexão e meus escritos, ajudando-me – obrigando-me, melhor dizendo-, a reconsiderar uma e outra vez os cânones que tendem a fixar o texto teatral em uma órbita mais ou menos veladamente aristotélica.
Narraturgia, sim: um lapso conceitual que previa aceitação e clarificação, talvez podia servir para indagar ou pesquisar a geografia de um território fronteiriço e impuro no que se entrelaçam confusa e intricadamente ambos “gêneros”, o narrativo e o dramático, e cuja história se estende desde as origens do discurso ficcional até suas mais recentes fases. Pelo que diz respeito ao teatro, pois, não resulta exagerado afirmar que um vetor narratúrgico atravessa toda sua complexa genealogia, incitando ao estudioso e – por que não – também ao criador a transitar permanentemente desde um domínio ao outro.
Acaso podem explicar-se a poesia épica e a narrativa oral, raiz de todas as tradições literárias, sem referir-las em sua trama (ou urdidura) mais íntima, a expressividade propriamente dramática, teatral, do trovador (ou menestrel) ou do contador de histórias? E é possível não reconhecer em alguns procedimentos discursivos empregados pelos personagens de Michel Vinaver, Fabrice Melquiot, Peter Handke, Botho Starauss, Heiner Muller, Sarah Kane, Martin Crimp, Roland Schimmelpfennig, Daniel Keene e tantos outros, claros vestígios das vozes narrativas pós faulknerianas ou herdeiras do “nouveau roman”? Ele sem falar da dupla vinculação – à narrativa e ao teatro – de autores como Beckett, Duras, Bernhard, Jelinek, etc., mas alguns dos citados, nos poucos de cujos textos oferecem uma identidade mestiça (ou misturada, mesclada). Tema à parte, não estranho ou alheio, seria a indubitável contribuição dos estudos narratológicos à teoria e à prática da escritura dramática dos últimos 25 anos.
(...)
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