quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Uma receita de pernil de javali - Monólogo

Exercício coletivo de fragmentação / coesão

Participante : Rogério Viana

3. Monólogo. Enunciação de uma receita de cozinha que vai derivando para a incongruência.

(Cozinheiro com chapéu típico bem alto e vermelho veste avental também vermelho. Na mão direita uma enorme - exagerada - colher de madeira também vermelha. No rosto branco destacam-se as bochechas bem vermelhas)

Cozinheiro

(bem calmo, depois vai se agitando, como se engolisse as palavras)

As carnes exóticas, de caça, possibilitam pratos supimpas, deliciosos. Por serem exóticas, essas carnes merecem tratamento especial, temperos especiais, especiarias exóticas, claro! Nada de temperar como se fosse uma galinha ao molho pardo, ou um frango a passarinho, ou uma pobre sardinha ou uma pomba rolinha. Não podemos nos esquecer que carne exótica não combina com gente comum. O paladar dos comensais deve ser também apurado. Feitas as considerações iniciais vamos aos ingredientes. Atenção aos detalhes, anotem tudo direitinho. A receita é imperdível. Pega-se um pernil de javali selvagem ainda sangrando. Deve ter sido abatido com uma certeira flechada. Se a seta não for certeira a carne pode ficar com sabor incerto. O certo é que de posse da caça o caçador não deve abster-se de terminar o abate com um preciso golpe no coração da fera. Levanta-se a perna traseira direita, aquela que fica no lado contrário da perna esquerda, a que levou o golpe fatal. Uma adaga de corte preciso deve romper a artéria femoral do javali. Depois, força, muita força para romper os ligamentos da perna com o tronco do animal. Retirada a peça, peço que fiquem atentos para a imediata retirada de uma glândula que fica escondida na virilha do bicho. É uma pequena bolsa sebácea, de cor amarela e cheiro insuportável. Lavar imediatamente as mãos e, com certeza, a adaga. Imediatamente retirar a pata fendida do animal. Fazer um corte no pelo do javali a partir do pé fendido, já retirado, e até o local de onde retirou-se aquela bolsinha escrota, escreta, escrita, descrita, dita, cuja ajuda ajudará a produzir uma peça memorável ao paladar mais exigente do comensal mais abastado.
Lave em água corrente. Calcula-se que um javali de porte médio produza um pernil de uns 5 a 7 quilos, no máximo. Para cada quilo de pernil, usa-se 100 gramas de mel, melando referida perna com um punhado de grama fresca amarrada com tomilho, coentro, unguento, rabugento, nojento, salsa, salsaparrilha, nós moscada, dill, o tal endro, mais coentro, dentro, páprica picada, esqueça as da abelha amaldiçoada, adicione, a seguir, sal a gosto, antes pergunte aos comensais quem é hipertenso ou diabético, não é ético, na cozinha, adicionar sal a gosto se o gosto do freguês não permite mais sal ou mais açúcar. Mas não faz mal, sem mel ou sem sal, esta receita não pode terminar mal, afinal, coisa e tal é você optar por uma receita que, convenhamos, para o que se propõe, agradará em muito o principal comensal, mesmo que coma sem sal, salsaparrilha, camomila, melissa, estragão, dill, o tal endro, coentro, unguento, rabugento, desse nojento eu me afugento e me arrebento em uma casquinha crocante que a partir do mel adicionado, desligue o ar condicionado e acenda o fogareiro, prepare o braseiro, coloque nele o pernil inteiro e deixe fritar, digo cozinhar, cozer, manter em banho maria, se ela não estiver disposta, alegando dor de cabeça, enxaqueca, período fértil, menstruação, use da imaginação, agite bem seu instrumento, com uma mão, depois a outra, deixe escorrer o líquido denso, esbranquiçado, o leitinho de duas latas de leite condensado, coloque tudo numa panela bem pequena, assim que começar a ferver, adicione cinco enormes colheres de chocolate em pó, não do tipo Nescau que pode ser melhor, mas faz mal, junte uma colher de manteiga, margarina não vale, nem sem sal, salsaparrilha que é bom para dor de barriga. Esparrame o resultado do cozimento numa peça, na sua mesa de mármore, não faz mal, or more, que de mal a gente não morre, mas seu brigadeiro pode ser enrolado e você, deve adicionar sobre ele pistache picado, pimenta malagueta, aniz estrelado, endro, o dito dill e, assim se prepara a grande ceia da pátria varonil, encoberta por um céu todo anil, as cores do Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, e tudo aqui vira um puteiro onde todos nós somos nossa própria sobremesa, onde nela sobrevieram os sobreviventes, os pobres viventes que ainda acreditam numa receita milagrosa para tornar a todos nós super heróis de nós mesmos ou os pobres habitantes que somente podem comer os restos da ceia dos cardeais, não aqueles de épocas ancestrais, mas de tempos atuais que lá de longe, em Brasília, Londres, Milão, Tókio, Moscou, Paris, Dacar, Shaolin, Pequin, Beijin, adicione um pouco de pequi, pedaços de caqui e é por aqui que termino e me despeço, já enfadonho. Tenham uma boa ceia, comam à vontade, saúde e, depois, não se esqueçam de arrotar que faz bem. Muito bem! Se alguém cair de quatro, cuidado. O javali ficou manco e não sabe andar de muleta ou de bengala!

(Todos em cena arrotam, felizes e satisfeitos. Vomitar não é preciso, arrotar, sim)

Oficina Regular de Dramaturgia – Núcleo de Dramaturgia SESI-PARANÁ
Roberto Alvim – Curitiba – PR – Aula de 14 de abril de 2009 – Teatro José Maria Santos


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