terça-feira, 22 de setembro de 2009

Uma carta testamento, uma revelação

Uma carta elaborada coletivamente e editada abaixo como sugestão minha a partir do texto sugerido por Joanita Ramos. O trabalho faz parte da Oficina comandada por Márcio Abreu, na oficina Amostra Grátis, promovida pela FCC - Fundação Cultural de Curitiba.


Prezado testamenteiro,

Aos 22 de setembro de 2009, na presença das pessoas que indiquei antecipadamente há cinco dias, quero que seja revelado e tornado público meu testamento, sem, no entanto deixar de dizer que lamento não poder estar presente. Os motivos, claro, são óbvios, mas quero destacar que eu nunca fui uma pessoa óbvia. Sempre tive minhas idiossincrasias, minhas frescuras, meus pitis, dando motivos a comentários maldosos de pessoas que não foram convidadas para esse ato formal, mas que é de extremo valor para os que estão presentes diante do testamenteiro. Não o que lê, mas o que guardou por fé o presente documento público.

O legado que faço, em sã consciência, mesmo entorpecido por comprimidos, soros, anestésicos, punções, choques e outros, é o legado de alguém que viveu pouco e que muito amou. Estou exagerando na questão do pouco que vivi. Oitenta e quatro anos não são assim, de todo, algo a se considerar pouco tempo de vida. Também não é de se considerar que eu tenha amado muito. Afinal, se estive em casamento, oficialmente, doze vezes não é um número comum, nem seus resultados óbvios, claro! Eu poderia ter me casado, sim, me casado muitas vezes mais, talvez uma dúzia a mais, pelo menos é o que atestam as certidões de casamento, de desquites, de separações judiciais, extrajudiciais, de divórcios consensuais ou de divórcios litigiosos.

Como no final de minha vida não pretendia causar mais polêmicas, nem desejar ser mal interpretado pela minha pequena família e nem pela imensa maioria dos moradores dessa provinciana cidade ao sul do rio Grande e a norte do rio Iguaçu, a oeste do mar e a leste de onde vocês estão neste momento, elaborei, em cartório o testamento que terá que ser lido a seguir, conforme minha firme vontade e minha expressa lucidez moribunda.

Para meu amante Ricardo, deixo todos os meus bens móveis e imóveis, com exceção do conteúdo secreto da gaveta do meio da cômoda do quarto de casal.

Vocês estariam surpresos com o nome de Ricardo? Que Ricardo é esse? Tive o Tozzi, tive o Russi, tive o Pucci, tive o Puccinelli, tive o Locatelli, o Fraletti, o Favetti, tive o Micheletti, Michelon, tive o Ariston, tive o Aristeu, o Romeu, aquele outro que não morreu também, tive o Rodrigues, tive o Alcides, tive o Rodrigo, tive o Fradique, tive o Frade, tive o Padre, tive o Bispo, tive o Alonso, tive o Alfonso, tive o Afonso e tive outros tantos Ricardos, não apenas de prenome, muitos de sobrenome, inclusive. Mas o Ricardo, o citado, é o que mais alegria me proporcionou na vida. Estão curiosos? Não fiquem, em breve vocês o identificarão, direitinho.

Antes de prosseguir, um momento de reflexão: É incrível como a natureza humana encontra formas para chamar nossa atenção: o deserto avança inexoravelmente. Diante da ameaça da desertificação, não há mal nenhum em dar melhor explicação, mas eu, ainda cá com meus botões teria que perguntar, antes de prosseguir: Seria exigir demais alguma atenção neste momento? Seria demais exigir mais atenção? Seria? Não sei onde estará a vida quando se aperceberem que o tempo é voraz. Sou aquele que escreve errado por linhas tortas, quando a minha índole me impede que me cale, porque esgotam-se meus dias. Assim mesmo o deserto avança inexoravelmente.

Querem saber de uma coisa ? Todos nós queremos saber: Que coisa!!! Não é uma pergunta, é uma exclamação! Ou minha certeza! Escrevo este meu depoimento, digo, testamento, meu último lamento, minha lamúria, eu nesta penúria terminal, e, quero que todos saibam a verdade, agora que já não tenho mais planos ou esperanças, nesta minha vida que alguns poderiam classificá-la de marginal, fora do esquadro, um mero jogo ou uma jogada inesquecível de um grande sujeito. Claro, o sujeito em questão sou eu, modéstia às favas!

O deserto avança inexoravelmente. Seria pedir demais que quando puderem ler esta carta testamento a considerem como meu principal legado à posteridade? Mas o que estou dizendo? Que poderá um homem legar para a humanidade? O que legar à humanidade quando se vive os estertores de uma vida ou como dizem os mais singelos: ele está mesmo com um pé na cova!

O deserto avança inexoravelmente. Veja que até lá, vocês só terão exatos 181 dias, e depois mais 17 dias. Que quantidade de dias são essas? O testamenteiro saberá explicar com mais cuidado.
Deixo-me levar agora. Nunca mais me verão. Assim, passo ao testamento propriamente dito, melhor, escrito, lavrado e registrado no cartório de títulos e documentos para suas validades e pleno direito sucessório, ou algo similar.

A todos os que desse testamento tiverem conhecimento, declaro em alto e bom tom, ou som ou o que isso possa significar que, neste momento, no gozo de minhas faculdades mentais em perfeito estado, volto a declarar que para meu amante Ricardo, deixo todos os meus bens móveis e imóveis, com exceção do conteúdo secreto da gaveta do meio da cômoda do quarto de casal.

Portanto, tudo o que eu queria legar, deixar, transmitir era mesmo isso: para meu amante Ricardo, deixo todos os meus bens móveis e imóveis, com exceção do conteúdo secreto da gaveta do meio da cômoda do quarto de casal.

O meu amante Ricardo, cujo endereço não consegui localizar a tempo, nem pude indicar seu paradeiro, por estar ausente, então, não terá direito a coisa nenhuma. Então, cumprindo-se o que desejo, que se passe ao conteúdo secreto que está devidamente guardado na gaveta do meio da cômoda do quarto de casal, cuja chave integra o presente testamento e a qual deverá neste momento ser utilizada pelo senhor testamenteiro na presença dos convidados.

Para não criar mais curiosidade, mandei transcrever o que consta no envelope de tom amarelo, no formato de 222 x 333 mm, em duas folhas de papel ofício, medindo 210 x 297 mm, comumente chamado de papel A4, que por sua vez é metade do papel A3, que tem exatos 297 x 420 mm, e onde será lido o seguinte: Para começo de conversa, não sou Doroti Lacroix. Meu nome verdadeiro é Doroteu da Cruz e durante 60 anos me passei por mulher. Fui casada um monte de vezes, enriqueci herdando as propriedades e os bens fiduciários, hipotecários e similares de todos os meus falecidos ex-maridos, o que me levou a ser considerada uma das mulheres mais ricas dessa província sulina. Assim, como nunca pude gerar filhos, nem estava disposta, digo, disposto, a dividir a imensa fortuna que acumulei com nenhum filho da puta, aproveitador ou falso sobrinho, quero que todos os meus bens sejam levados a leilão e os valores apurados, somados ao que estão em minhas várias contas correntes nos bancos listados, sejam agrupados numa só conta e, em seguida, que cinquenta por cento do valor apurado seja destinado a construir 10 bibliotecas, cinco por cento seja empregado no financiamento de gravações de discos de músicos instrumentistas das mais variadas formações e os restantes quarenta e cinco por cento sejam destinados à construção de um grande teatro, no máximo com 250 lugares e que nele sejam montadas um total de 12 peças por ano durante os próximos 5 anos.Findo esse prazo, quero que o teatro seja entregue para o último grupo dirigido pelo teatrólogo e diretor Márcio Abreu, meu herdeiro por força dessa história maluca que ele me obrigou a protagonizar e cujo testamenteiro ele se transformou e que vai obrigar, neste momento, a todos vocês darem ciência e, como queiram, possam comentar, criticar, esculhambar ou simplesmente se calar e ficarem, então, satisfeitos e informados.

Ah... os 181 dias e mais 17 dias são apenas números e foram citados apenas para dar um pouco mais de dramaticidade ao testamento que hora encerro e que vocês tomam conhecimento.

Doroteu da Cruz

(seguem assinaturas, carimbos, testemunhas, e a fé do Cartorário que elaborou o presente documento)

O outro grupo trabalhou e produziu o texto abaixo:

Carta ao Inimigo

Encontrei nas ruínas dessa cidade que tanto amei, um mapa, um norte...Agora tudo ficou mais claro, pois vejo que a sua ação destruiu tudo o que me era caro. Estou cada vez mais próximo da compreensão do valor desta vida. Então pergunto a você: Por que o ser humano, estando rodeado de outros seres humanos, está se sentindo cada vez mais solitário?

Sinto-me triste e impotente. Onde está a humanidade? De que vale uma vida? Esses olhos que me fitam do alto e que não são irmãos dos meus. Eles ainda não viram tudo.

O que pode um homem deixar para a humanidade? O que uma formiga representa para o formigueiro? Hoje, antes de lhe escrever, me detive a olhar as formigas. absorvi-me a contemplar o monte de terra, parecido com um pequenino vulcão, a derramar sua lava de formigas. Emergindo do estreito orifício, elas seguiam enfileiradas, como um exército ordenado. Quando criança, eu fazia isso com frequência. Impressionava-me observar como elas caminhavam militarmente,
dedicadas à construção de seu pequeno mundo.Confesso que hoje senti uma pontada de remorsoao recordar as brincadeiras malvadas da meninice, quando desmanchava sua formação e até as pisoteava.

O meu mundo, o meu quintal, a minha infância e o meu formigueiro, você destruiu. Os tiros vinham de todos os lados. Já não consigo reconhecer a saída. Encontrei uma pista mas ainda não sei o que quer dizer: quando nossos poros não estão tapados pelas implacáveis camadas, a proximidade da presença humana nos sacode.

Estou cada dia mais próximo da compreensão do valor desta vida. Vejo, pouco a pouco e com clareza, a despeito da minha miopia, que na vida, tudo o que só se compra com dinheiro, muito pouco vale.

Aonde tem para vender risadas? Ou sorrisos? Ou um pouco de bem-estar? Não há um mercado para as coisas que vem do íntimo. De dentro do coração. O que vale uma vida? Quanto vale a minha vida? De que valeu a sua vida, meu inimigo? Penso que o melhor legado que podem as pessoas deixar para a humanidade são os mais simples exemplos: espargir alegria,distribuir bondade, espalhar simplicidade.

Olhe as formigas. Não sei se elas enxergam a respectiva tarefa individual que executam.Penso que a finalidade do trabalho das formigas é pelo bem estar da comunidade. E nós, seres ditos racionais, por que nos individualizamos? É de nossa natureza a vida em comunidade. Não sei por que insistimos em isolarmo-nos.

Então, meu prezado inimigo, aceite minha mão estendida.

Integrantes: Luiz Reikdal, Marilza Conceição, Dilma Martins, Ângelo, Osiris Duarte, Karina e Maria Zenaide

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