O diretor e autor David Ian Neville pediu, ontem, dia 30 de outubro, que os participantes do Workshop de Dramaturgia do SESI Paraná escrevessem um texto com 500 palavras contando A VIDA NUM DIA tendo como personagem alguém que trabalhasse no prédio do SESI onde o evento acontecia.
Ele se inspirou para a formulação do exercício na publicação inglesa THE SUNDAY TIMES, de Londres, que publica uma coluna com o título "A Life in the Day", onde focaliza um dia na vida de personalidades, artistas, atores, políticos. Na edição do dia 4 de outubro, o focalizado foi o ator Dominic West. O texto, escrito por Ria Higgins tem 986 palavras e 5036 caracteres.
Acessar o texto em:
O exercício que fiz é o que apresento abaixo: (o personagem é fictício, claro)
A vida num dia
Personagem:
Lúcia dos Anjos Moreira, 25 anos, morena, de cabelos à altura dos ombros e bem cacheados é alta e discretamente fora do peso. Trabalha como recepcionista da entidade, solteira, faz o último semestre da faculdade de Letras (com Inglês), mora com a mãe (aposentada) e com o irmão que é viciado em crack. Não conviveu com o pai que abandonou a mãe assim que soube que ela estava grávida pela segunda vez. Seu irmão é mais velho dois anos. Ela corresponde-se pela internet com um homem mais velho (de 45 anos) que mora em Portugal e que diz ser engenheiro de uma construtora na cidade do Porto. Só teve um namorado na adolescência, com quem viveu sua única experiência sexual. Prefere mais livros a sair na balada. Prefere mais vídeos em casa a teatro. Prefere mais jazz, blues a baladas sertanejas e músicas que ela chama de “brega”.
Depoimento ao jornalista Rogério Viana
O despertador do celular nem precisou disparar seu irritante som. Automaticamente o desligo segundos antes dele assinalar que são 6h15. Hoje eu acordei com os primeiros raios de sol invadindo meu quarto. Manhã incomum em Curitiba. Nos últimos dias desta primavera chuvosa e com dias nublados e frios, o despertador até disparou algumas vezes. Hoje, não. Foi diferente. Fez calor durante a noite e eu acabei dormindo só com o short do meu pijama. A blusa eu retirei, ainda na madrugada, e ficou em baixo do meu travesseiro.
Pés no tapete. Sentada na cama faço um alongamento. É sábado e tenho que trabalhar. É meu plantão. Uma vez por mês trabalho num sábado, até o meio dia só, felizmente. Ligo a TV. Está num canal de notícias. Em toda a região sul vai fazer calor hoje, mas é possível, que no final do domingo o tempo mude e o feriado tenha chuva. Quem foi para a praia poderá voltar frustrado. O sol pode não dar as caras e a primavera ficará mais com aparência de outono. Mas isso não é de espantar quem mora aqui.
Como dormi bem e já estava na cama mais cedo, não amanheci com os olhos inchados. O óculos escuro hoje será necessário. Também, com um sol desse tão forte! Já sinto que minha mãe está fumando. Ainda bem que o cheiro desagradável do cigarro dela seja agora substituído pelo aroma daquele café que está sendo feito. Café forte, como gostamos de tomar.
O aquecedor ficou ligado a noite toda e a água morna escorre por meu corpo. Vou aproveitar e lavar meu cabelo. O sol da manhã e o calor que vai fazer hoje vai ajudá-lo a secar mais rapidamente e não vou precisar ligar o secador. Gosto de sentir o cabelo molhado. Estão dizendo que os cabelos cacheados estão novamente na moda. Sempre gostei dos meus cabelos.
O António diz que meus cabelos são maravilhosos. Sim, ele se chama António, com um improvável acento agudo que aqui não adotamos. Ele é mesmo António. Meu português do Porto.
Minha mãe não estava com aquela cara entristecida. Sorriu e disse: Ele dormiu em casa, voltou cedo. Meu irmão é nosso grande problema. Não há o que façamos que o deixe bem. Se tentamos ajudar, ele nos agride. Se fingimos não dar importância, ele nos cobra atenção. Perdeu o emprego, agrediu seu chefe. Brigou com dois vizinhos, amigos de infância. Foi fichado na polícia, como usuário de crack. Não quer ser internado numa clínica de reabilitação. Não quer. Nem conversar. Não mais procura sua namorada. Parece que já a esqueceu. Hoje, sua grande paixão é um vício maldito que nos tira o pouco dinheiro que temos e a alegria que nos restava.
Hoje conheci dois homens diferentes. Informaram que são autores, diretores escoceses que vieram ministrar um workshop sobre dramaturgia. Um deles, de olhos azuis, sorriu para mim. O outro, que tem mesmo cara de escocês, falava com alguém daqui com um sotaque que lembrava meu António.
(500 palavras – 2830 caracteres)
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