sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Uma família desnudada pela palavra

O título da nova montagem da Companhia Brasileira de Teatro traz em si um convite para várias reflexões. Convida e provoca. Estimula e, ao mesmo tempo, se colocada ou dita com certa ironia, pode significar “fique na sua”, ou “não se meta”. A verdade é que “Isso te interessa?” deixou-me com muita vontade de não “ficar na minha” e não deixar de “meter minha colher” na discussão que proponho sobre essa montagem teatral que teve sua estreia, ontem, no Teatro Novelas Curitibanas. Ressalvo, no entanto: o que vou escrever não tem, nem de longe, a pretensão de ser uma crítica teatral. É apenas e tão somente um comentário e uma provocação que faço para ensejar análises mais apuradas sobre o trabalho dirigido por Márcio Abreu e que conta no elenco com Giovana Soar, Nadja Naira, Rodrigo Ferrarini e Ranieri Gonzalez. O texto, do original em francês - Bon, Saint-Cloud -, é de Noele Renaude e foi traduzido por Giovana Soar e Márcio Abreu.
Do que se trata, então, “Isso te interessa?”, do que se trata?
No material de divulgação a peça é anunciada como “uma espécie de saga familiar cotidiana, em que o tempo, na forma e no conteúdo, é um dos principais assuntos”. A peça aborda três (ou seriam quatro) gerações da mesma família. No programa da peça, há o destaque de que são “pais, mães, filhos e cães” que “poderiam fazer parte de qualquer família comum, em qualquer cidade do mundo. Nada de especial acontece. Não há grandes eventos, apenas os acontecimentos chave que determinam as trajetórias prosaicas das vidas dos personagens”.
O programa adianta a sinopse da peça: Um pai que fuma, uma mãe que esquece, um filho que vai embora, uma filha que fica grávida, uma mãe que se separa, os filhos que não “estão nem aí”, um pai que morre, uma filha que morre, uma mãe que fica, uma mãe que decide morrer, um filho que volta, um filho que se lembra, os cachorros que estão por ali, o tempo que passa, as pessoas de quem lembramos, o lugar onde para onde queremos ir e o lugar de onde nunca saímos.
Sim, “Isso te Interessa?” não engana. É mesmo tudo isso. É também, pela tradição de pesquisa de linguagem que a CBT empreende ao longo de sua trajetória no cenário do teatro brasileiro, um passo além. Eu diria muito além. E é exatamente sobre isso, o ir além, na linguagem, na provocação do tal “estranhamento” característico do teatro contemporâneo, no cenário que se mostra simples e eficaz, na iluminação que se abre e se fecha para pontuar a passagem do tempo, e nos singelos efeitos que objetos de decoração da casa (um abajur e uma luminária sobre a mesa da cozinha que depois fica inclinada) iluminam e jogam luz sobre aquela família pra lá de singular e que se desnuda pelo poder da palavra. E da inventividade.
Cenário, iluminação. Palavras, vozes. Figurino. Figurino? Sim. O “figurino” – assinado por Ranieri Gonzalez – é uma grande sacada, é o grande lance, o toque de mestre dessa família que se desnuda diante de uma plateia que fica em suspense, quase sem respirar. O que está faltando? A música, sim, a trilha musical. No começo, assinalando, datando onde começa o trecho da saga daquela família, ouve-se Ranieri Gonzalez cantar Johnny Cash. Novamente fantástico, como fez em VIDA, Ranieri não só assinala o que virá pela frente, na voz, mas no insistente cigarro que nunca se apaga na mão daquele “obstinado” fumante, que diz dar muito duro para, no final, nada de mais importante mostrar, ou lhe trazer recompensa. A escolha da belíssima canção “The Lucky Old Sun (Just Rolls Around Heaven All Day)” (ouça-a aqui) é uma oração, um lamento, um prenúncio das tristezas que estão por vir. Cash teve uma trajetória de belíssimas canções, envolvimento com drogas, prisões, amor arrebatador e uma vida profissional de mais de cinqüenta anos. Ele morreu com 71 anos, em 2003.
Se a canção, lamento e oração de Cash, com Ranieri Gonzalez, dá o tom da trilha sonora que vai permear a vida daquela família singular, o que virá, a partir dali é o que transforma a montagem de “Isso te interessa?” em algo inovador em termos da linguagem dramatúrgica. O trabalho da CBT é sempre de inovação na busca de uma linguagem e do uso da palavra que pode transcender aos limites da enunciação. Esta já se apresenta ainda mais atenta, focada na palavra, nas várias formas de discurso.

A poética dos "rípios"

E o que, aos meus olhos e ouvidos aparecem ainda mais provocativos na forma como é tecida a dramaturgia de “Isso te Interessa?”, tem a ver com o que os italianos denominam de “zeppa” (cunha). Alguns teóricos contemporâneos chamam de “turn ancillaries”, segundo ensina Umberto Eco, “aquelas expressões que, nos romances, seguem as falas do diálogo”.  Para nós, a “zeppa” são os rípios, são aquelas palavras que entram num verso para completar a medida de uma rima. Diz sobre o rípio, de novo, Umberto Eco: “... é uma palavra desajeitada, como a disfunção que define, fonossimbolicamente evoca tosse, espirro, regurgitação e soluço, semanticamente sugere intrusão inábil, remendo evidente”.
A trilha sonora, então, num repetitivo e aparentemente monótono dueto de um violoncelo e contrabaixo acústico, dialoga com os “rípios” que alguns poderão assinalar que sejam apenas as didascálias, ou como queiram, as rubricas que passam a integrar de forma magistral os diálogos e as trocas que são feitas do ator para o personagem, de personagem para personagem, de personagem para ator.

E assim, repetitivos e aparentemente monótonos como o violoncelo e o contrabaixo acústico, as falas dos personagens ganham uma dinâmica cênica sem igual. O que causa estranhamento, na tradição contemporânea do discurso dramatúrgico, vira “zeppa”, “cuneo”, “remplage”, aquelas pequeninas pedras fonéticas que são colocadas no texto para, no dizer do texto, dizer do texto, dizer o que acontece, fazer acontecer no que foi dito e, de novo, repetir o dito, dizer no texto com intermináveis “rípios”, boa parte deles no verbo “dizer”. O pai disse, diz a mãe. Diz a mãe, o pai disse. Um jogo assim com as cunhas fonéticas da palavra “diz” que alavanca a palavra seguinte e embeleza todo o enunciado daquele discurso que pode ter uma aparência estranha, mas é forte, potente, inovadora.
O texto de “Isso te interessa?” trabalha – na tradução de Giovana Soar e de Márcio Abreu – com uma beleza poética que o “rípio”, a “zeppa”, os “turn ancillaries”, não sei se caberia em francês o termo “remplage” ou “remplissage” provocam a cada frase proferida pelos atores, pelos personagens, pelos personagens/atores, naquela troca de falas que não são réplicas, são poesia pura, pois ao invés de serem defeito, por serem remendos, até fragilidades do texto, consertos, deslizes, quedas de tensão, até mesmo as desventuras que por vezes contaminam a pretensa harmonia e essencialidade da estrutura, como ensina sobre o “rípio” o teórico italiano Pareyson, citado por Umberto Eco no seu livro de ensaios “Sobre a Literatura”, os “rípios” da montagem da CBT são essenciais por serem belos. São eles, acima de tudo, que trazem esse ar novo para a estrutura, para a construção e para a beleza da montagem.
Claro, o texto só tem força quando sai da boca dos atores, dos personagens, dos personagens/atores. Leiam isto:
“Você não vai ter brancos como minha mãe, diz a mãe, isso me mata, diz a mãe”.
“Está na hora, ela suspira, de passear claro pros lados de Saint-Cloud, e a mãe fuma, e o cachorro espera, e a mãe diz, veja só nós dois aqui sozinhos por um bom pedaço de tempo, e o tempo passa, e a hora de ir para Saint-Cloud passa e a mãe coça a cabeça do cachorro, e a mãe da mãe entra”.
“Bom mamãe, diz a filha depois ela pára, a mãe para na frente do espelho, eu pareço bem mais jovem que você, observa a mãe, você ta delirando, mamãe, diz a filha, o filho Bloch morreu há quinze anos, a mãe abana o ar, a mãe diz, você sabia que eu sempre detestei Saint-Cloud, a filha sai, ela diz, apenas, eu arruinei o essencial da minha vida”.
Desnudos pela palavra e vestidos de tremendos significados por simples palavras que repetidas, repetidas, repetidas, mostram e revelam o cotidiano singelo de uma família comum, os “pais, mães, filhos e cães”, os personagens de “Isso te interessa?” consagram a montagem nas vozes dos atores, nos corpos de Ranieri Gonzalez, Giovana Soar, Rodrigo Ferrarini e Nadja Naira.
Todos eles, como “rípios” de si próprios e dos personagens que são e em comunhão com os “rípios” da direção precisa, da iluminação necessária, do cenário angulado, oblíquo, num provocante “ponto de fuga” que termina numa pequena parede com um pequeno sofá, fazem um concerto poético muito potente e o “rípio” do violoncelo e contrabaixo acústico, ecoam ainda em mim.

Um adendo, na forma de uma observação crítica

Nenhum espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro, sabemos, deixa de atrair a atenção da mídia, da classe teatral e, é obvio, das pessoas que se interessam pelo teatro de qualidade, ou até mesmo, pelo que de “entretenimento” (no sentido de passar o tempo), uma montagem desse grupo provoca.
Há vários dias anunciou-se a estreia de “Isso te interessa?” e a notícia foi publicada por toda a impresa, em jornais, programas oficiais da Fundação Cultural de Curitiba, em blogs e sites especializados em teatro. Anunciou-se a estreia e nas informações publicadas, os ingressos para os interessados deveriam ser retirados de graça, uma hora antes do espetáculo começar, portanto, às 19 horas.
Algumas horas antes, mandei, via Facebook, uma mensagem para o Márcio Abreu, desejando sucesso na estreia. Escrevi, também, a tradicional expressão “Merda!”. Escrevi também em francês: “Merde!”. E na minha mensagem eu escrevi o que se segue e o Márcio Abreu respondeu assim:

Rogério: Merda!
Márcio: Obrigado Rogério! Qdo vc vai?
Rogério: Merde! Vou sim... quero chegar mais cedo para pegar ingresso, hoje mesmo. Será que vai ter?
Márcio: Espero que sim.
Rogério: Um abraço. Até mais. Valeu!

Em nenhum momento pedi para que ele “reservasse” um ingresso para mim. Deixei claro que chegaria mais cedo para pegar ingresso e apenas perguntei se teria ingresso disponível, caso fosse mais cedo. O Márcio respondeu: Espero que sim.

Saí de casa às 18h00. E segui a pé, da praça Osório, ao teatro Novelas Curitibanas, passando pela praça Tiradentes, Catedral, Largo da Ordem, seguindo pela rua Treze de Maio e virando em direção ao teatro. Lá cheguei às 18h32. No mesmo instante chegava uma senhora, que disse ser professora de teatro. Na calçada, no acesso ao estacionamento, que estava com seu portão fechado e nele um cartaz escrito LOTADO. A professora ouviu do porteiro que não havia mais ingressos. Ela lamentou, tentou argumentar sobre a notícia que saíra na mídia, dizendo que “os ingressos deveriam ser retirados a partir das 19h00”. Eu, ao presenciar a cena, confesso, fiquei indignado. Como é que anunciam a retirada dos ingressos a partir das 19h00 e, naquele instante, exatos 18h32 os ingressos já estavam esgotados? O porteiro, com uma lista na mão, me disse: “Pois é, hoje é estreia e só para convidados...” Novamente argumentei: Mas como é que anunciaram para que os ingressos fossem retirados às 19h00? O porteiro, com a lista na mão, disse: “Sempre é assim”. E deu outra detalhe: “O espetáculo é apenas para 33 convidados”.
Novamente, muito constrangido e revoltado, disse: “Mas eles e vocês deviam anunciar que hoje seria apenas para convidados e apenas 33 convidados”.
O porteiro, com a lista na mão, me disse: “Pois é... acontece”.
Neste instante recebi a ligação de uma amiga – a Lorita Rivera. Ela queria saber se eu podia retirar um ingresso para ela, pois sabia que eu ia mais cedo, etc e tal.
Eu disse: “Não tem mais ingresso! Hoje é apenas para convidados. Apenas 33 convidados”.
Completei: “Há umas horas mandei uma mensagem para o Márcio Abreu...” E contei sobre a informação que trocamos.
Foi neste instante, quando eu citei o nome do Márcio Abreu que o porteiro com uma lista na mão, me perguntou: “Mas qual é o seu nome?”. Respondi: “Rogério Viana”. Ele, então, me disse: “Ah, seu nome está aqui. E me mostrou a lista impressa e meu nome, na posição 33, escrito a mão”.
Claro que fiquei agradecido pela gentileza do Márcio Abreu ter anotado meu nome na lista de “convidados”. Mas eu não tinha ido para a frente do Teatro Novelas Curitibanas na condição de “convidado”. Eu fui para lá como interessado em assistir a uma outra estreia naquele teatro, como fiz, recentemente em “Concerto para Rameirinhas” e “Orinoco”. Fui como espectador e cheguei antes, bem mais cedo, para pegar ingresso, como sempre faço.
O porteiro, então, abriu a porta. Fui até a bilheteria e o funcionário me deu o ingresso de número 01. Olhei para o relógio: 19h04.
Qual o motivo que me levou a narrar este acontecimento?
É o que segue.
Sentado na hall do teatro, ouvi um dos seus funcionários comentar com uma jovem de óculos o que estava acontecendo no lado de fora, na entrada do estacionamento. Claro, eu já sabia o que era. Pessoas reclamando por não ter mais ingresso.
Foi aí que ouvi a tal jovem dizer:
“O bafo todo é porque o espetáculo é de graça!”.
Levantei-me, indignado. E disse:
“Você disse o quê?”, ela olhou-me com um ar superior.
Completei:
“Você está equivocada, mocinha. O espetáculo não é de graça, não. O espetáculo está sendo pago pelos nossos impostos. Pelos impostos que pagamos e que permite que o espetáculo de vocês seja financiado pela Fundação Cultural”.
E emendei: “Quem vem para cá não vem porque é de graça. Vem pela qualidade da companhia, dos atores. Vocês deveriam informar sobre a estreia ser apenas para convidados e também que o espetáculo é para apenas 33 pessoas”.
“Mas só hoje, quando colocamos o cenário é que decidimos deixar 33 lugares”, disse a moça que, descobri, depois, tratar-se de Nina Ribas, a produtora executiva da montagem.
E ela completou: “A mudança do figurino (sic) também foi decidida hoje”.
“Mas vocês não utilizam a internet para se comunicar?” perguntei. “Fica muito fácil comunicar qualquer coisa pela internet, pelos blogs, pelos sites, pelas redes sociais”. Mas ela não me levou muito a sério.
Completando a narração do acontecido.
Às 19h17 chegou a segunda convidada, a elegante e linda atriz Viviane Gazotto. Conversamos generalidades. Às 19h21 chegou conhecido autor-diretor-compositor-cantor. Passou direto. O diretor Diego Fortes e uma moça loira chegaram às 19h32. Depois, às 19h43, chegou um casal, ele autor-produtor e ela, atriz-autora. Dois minutos depois, entram dois homens que não identifiquei nomes. Em seguida, às 19h48, entra uma mulher ruiva de cabelos encaracolados. Segue-se a entrada de mais dois homens. Já eram 19h50. Marcelo Munhoz, que é ator e professor de atores, chegou às 19h53. Ele era o décimo segundo convidado a chegar, faltando pouco menos de 10 minutos para o espetáculo começar.
Nos minutos finais, mais 20 pessoas chegaram.
Entramos na sala de espetáculos. Sentei e, ao meu lado, havia uma cadeira desocupada. Antes do espetáculo começar, sentou-se ali a atriz e produtora Cássia Damasceno.
Black-out.
A luz acende em resistência e tem início “Isso te interessa?”.
“...o irmão diz, então nesse caso, os gêmeos se despedem, eu não prendo mais vocês, o pai beija, bom, sua filha, retorno, o irmão fica sozinho, o irmão bebe, o irmão se abaixa, hein? Coça a cabeça do cachorro, nós não temos, diz aí você e eu mais nada a fazer aqui além de ir embora nós também já que, e então o irmão e o cachorro saem”.
Há alguns rípios na minha narrativa. Mas são rípios sem importância, sem poesia. Só com a realidade. Os rípios, poéticos, ficam ecoando na sala, depois que o espetáculo terminou e o público aplaudiu de pé.
“Vocês precisar informar que a estreia é só para convidados. E que essa montagem só tem 33 lugares na plateia”, digo para a tal mocinha, digo, ou melhor, comento com Nina Ribas, a produtora excecutiva que, antes do espetáculo estava mais preocupada em preparar a chopeira para servir para os 30 convidados que lá estavam do que dar ouvidos ao que eu tinha para reclamar. Tive que sair mais cedo. Fazia frio e eu estava voltando a pé. Os rípios ainda estão ecoando em mim.
"...diz aí você e eu mais nada a fazer aqui além de ir embora nós também já que, e então o irmão e o cachorro saem".
O resto é outra história. 

Um comentário:

  1. Isso interessa muito.
    marcio abreu e CBT deram "vida" e nos deixou sem "oxigênio" e depois disso é impossível não me interessar.

    a cada frase, uma nova experiência

    parabéns a todos e a Noele Renaude!

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