sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Eternamente, um olhar sobre a solidão e o amor

Assisti ao curta ETERNAMENTE, do Beto Carminatti (premiado em 2003 e que pode ser visto neste link) e escrevi o seguinte comentário:


Eternamente


Ninguém pode estar sozinho tendo tantos desejos, tantos sonhos, tantas lembranças irrealizadas, tantas frustrações. O personagem vivido pelo expressivo ator Rodrigo Ferrarini em “Eternamente”, belíssimo curta premiado de 2003, de Beto Carminatti, em seu mundo virado pelo avesso, voltado para si próprio integra-se a esse microcosmo em que é seu abarrotado quarto onde ele vive apenas com o que está preso às paredes – fotos de mulheres belíssimas e inacessíveis – no amontoado de sentimentos não expressos e representados por um amontoado ainda maior de coisas sobre a cama e em seu entorno. Tudo isso passando por um olhar perdido, na sombra forte e que é tudo revelado num longo passeio que a lente faz sobre o universo daquele homem.
Ao fundo, um locutor de rádio, de um programa popular, onde almas perdidas oferecem a possibilidade de encontro com outras almas ainda mais perdidas, anuncia o desejo de uma mulher. Aquele homem ouve tudo com uma plácida angústia. Quase imóvel, sem mover nenhum músculo, apenas o olhar perdido, nostálgico talvez de tempos que ele, com certeza, nunca conheceu. De tempos de amor, de amor não consumado. De amor desejado de um modo tão diferente, pois é um amor desejado e que, aquele homem, se imagina abandonando as esquinas obtusas de sua vida, as personagens femininas que ele reconhece apenas nas difíceis vidas de mulheres de “vida fácil”, no baile que ele imagina e onde jamais pode dançar, enlaçando uma mulher real em seus braços. A fumaça de um sempre presente cigarro, a única coisa real que existe apenas no instante em que sai da ponta do cigarro e se perde nos ares. Como se fosse, como fumaça, os sonhos, os desejos daquele homem silente. Daquele homem que sonha. E que de ouvidos atentos espera que um milagre aconteça.
O locutor anuncia o encontro. Será numa praça. Numa praça real onde predomina um casal de pedra, um casal imenso, um casal poderoso que, há anos permanece bem próximo, mas imóvel. Preso pela arte e pela criação do escultor, mas impossibilitados de se tocaram ou de olharem-se por outros ângulos. São estas duas estátuas que formam este casal na praça que erroneamente é chamada de “Praça do Homem Nu”, que o encontro tão desejado é marcado.
A trilha sonora, nos momentos iniciais, com tristes músicas sertanejas, saudosas, vai, aos poucos ganhando os toques da tecla de um solitário piano, depois, o som de um acordeom, ainda mais triste.
Parece ser o começo de uma tarde de domingo. A praça quase vazia e povoada por gente ainda mais sem esperança – dois vagabundos, dois bêbados, talvez – que agridem e tocam uma mulher que por lá passa, sequer imaginam que, dentro de poucos instantes, uma possível história de amor vai acontecer ali.
Passa um ônibus, um bi-articulado. Um ônibus que sempre carrega diariamente tantos sonhos, dores, pesadelos, esperanças. O ônibus passa e, ao fundo, o homem parece indeciso ao atravessar a rua e caminhar para a praça do homem de pedra que está despido de qualquer vaidade. Para sua praça, onde ele, embora vestido de um jeito todo simples, sente-se despido de coragem, de uma vaidade que desconhece, de um pudor que jamais se viu defrontado.
Outro cigarro é aceso. E a fumaça assinala e faz contraponto com o olhar perdido, um olhar com um certo medo, com uma certa angústia. Será que a mulher que fez o anúncio na rádio vai aparecer? Ele vê uma mulher sentada num banco. Outra, que vê a cena de longe e não consegue dar mais nenhum passo, equilibrando-se num salto que parece não lhe ser adequado. Há um homem em pé, talvez pregando alguma nova mentira, mesmo estando com uma bíblia na mão.
O homem que sonha está entre as duas estátuas de pedra, está entre imensos blocos de granito que ganharam forma humana. Mas nenhum deles tem coração. Ele vai de um lado pelo outro levando em suas mãos o cigarro que assinala um movimento efêmero, que dá sinal de existir e desaparece no ar.
Entre um homem e uma mulher de pedra, aquele homem de verdade espera encontrar-se com uma mulher de verdade. Que ela tenha um coração pulsante e realmente desejoso como o dele. Que pulse esperança. Que pulse amor. Que exista mesmo e não tema nada deste insólito encontro.
O homem percebe que a mulher está um pouco afastada. Ela, a mulher de verdade, esconde-se atrás de um homem imenso de pedra, um homem que não tem coração, nem respira, nem move-se para apreciá-la.
O homem, assustado com aquela real presença, vai se proteger atrás de uma mulher de pedra, que está sentada e que nem percebe, também, que ele quer que tudo ali, naquele instante, seja verdadeiro e pulse numa dimensão jamais sonhada.
Com sua cabeça que quase chega a roçar, suavemente, o seio daquela imensa mulher de pedra, ele vê, ao longe, uma mulher de verdade que o olhar, agora, de verdade, com um olhar tão lindo por ser um olhar também com um certo espanto, com um certo medo. Um olhar de surpresa da possibilidade estar mesmo se tornando possível, real.
Nenhuma palavra precisa ser dita. Os olhos dizem tudo, pedem tudo, desejam tudo. Com o cigarro nas mãos, num gesto de insegurança ele avança depois de passar pelos seios da mulher de pedra. A mulher real, de verdade, dá passos lentos e posta-se quase entre as pernas daquele homem de pedra, com sua cabeça quase tocando o seu imenso e sugerido sexo.
A música da sanfona fica mais forte e o piano dita o ritmo que permanece lento, sem nenhuma dinâmica que possa indicar que os dois – o homem e a mulher – vão correr para um abraço tão desejado.
Os olhos da mulher esboçam, junto com um discreto sorriso, uma alegria. Mas o homem e a mulher, a seu modo, caminham para se encontrarem exatamente no espaço entre uma mulher e um homem de pedra. Sim, o casal que não tem coração, emoldura o encontro de outro casal que quer dar novo ritmo a seus corações. A vida ganha novos contornos quando emoldurada por seres inanimados que de coração nada entendem. Nem de amor, nem de ternura, nem de carinho, nem de vida, nem de morte, muito menos de sexo.
Ali, então, no ponto exato onde há um marco que registra a razão daquelas duas esculturas, naquele exato ponto registra outro marco e que é a razão de um homem e de uma mulher estarem se dirigindo, um para o outro, no encontro de seus destinos.
Vê-se, então, que não trocas de palavras, mas os olhares percorrem os corpos de cada um, na visão de que um tem do outro, de como enxergam o que realmente, que tipo de pessoa – um homem e uma mulher – estão se encontrando pela primeira vez. A atriz Sílvia Patzsch, expressivamente brilhante com seu olhar imenso, tenta segura a alegria de um sorriso que teima em aparecer e que, por medo, talvez, faz com que ela prenda sua vontade de gritar e dizer: eu encontrei meu grande amor. Ele, o homem também esboça um tímido sorriso. Ela, por sua vez, engole seco. Mas seus expressivos olhos, agora, brilham intensamente e levam para o olhar a alegria que a boca, discretamente, demonstra estar vivendo.
O homem estende a mão. A mulher, tímida, dá a sua. Ele olha para o outro lado. E sugere que caminhem para a outra direção. Os corpos, antes retesados, tensos. Agora os corpos estão relaxados. Ele, leva as mãos à cabeça. Faz um gesto de não estar acreditando que encontrou seu grande e definitivo amor. Caminham pela praça, tendo como moldura, uma mulher sentada e os pés de um homem, todos de pedra.
Eles caminham descontraídos até o final da praça, o limite da avenida. A avenida que os levará para um amor de fato.
Na foto impressa num prato de porcelana, entre corações almofadados, registra um amor de verdade. Um amor eterno. Um amor para sempre. Atrás da cabeceira da cama, que é real, o homem e a mulher, com roupas de noivos, estão ali, para sempre. Eternamente.  Sobre a cama, presentes saídos de uma loja popular de R$ 1,99. Mas seus corações estão felizes demais para eles terem que desvestir seus trajes do dia em que formaram o casal mais feliz de uma incerta cidade que o olhar preciso de Beto Carminatti criou com tanta poesia.

Rogério Viana
23 de dezembro de 2011
Depois de assistir, pela terceira vez ao curta “Eternamente”.





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