Eternamente
Ninguém
pode estar sozinho tendo tantos desejos, tantos sonhos, tantas lembranças
irrealizadas, tantas frustrações. O personagem vivido pelo expressivo ator
Rodrigo Ferrarini em “Eternamente”, belíssimo curta premiado de 2003, de Beto
Carminatti, em seu mundo virado pelo avesso, voltado para si próprio integra-se
a esse microcosmo em que é seu abarrotado quarto onde ele vive apenas com o que
está preso às paredes – fotos de mulheres belíssimas e inacessíveis – no amontoado
de sentimentos não expressos e representados por um amontoado ainda maior de
coisas sobre a cama e em seu entorno. Tudo isso passando por um olhar perdido,
na sombra forte e que é tudo revelado num longo passeio que a lente faz sobre o
universo daquele homem.
Ao
fundo, um locutor de rádio, de um programa popular, onde almas perdidas
oferecem a possibilidade de encontro com outras almas ainda mais perdidas,
anuncia o desejo de uma mulher. Aquele homem ouve tudo com uma plácida
angústia. Quase imóvel, sem mover nenhum músculo, apenas o olhar perdido,
nostálgico talvez de tempos que ele, com certeza, nunca conheceu. De tempos de
amor, de amor não consumado. De amor desejado de um modo tão diferente, pois é
um amor desejado e que, aquele homem, se imagina abandonando as esquinas
obtusas de sua vida, as personagens femininas que ele reconhece apenas nas
difíceis vidas de mulheres de “vida fácil”, no baile que ele imagina e onde
jamais pode dançar, enlaçando uma mulher real em seus braços. A fumaça de um
sempre presente cigarro, a única coisa real que existe apenas no instante em
que sai da ponta do cigarro e se perde nos ares. Como se fosse, como fumaça, os
sonhos, os desejos daquele homem silente. Daquele homem que sonha. E que de
ouvidos atentos espera que um milagre aconteça.
O
locutor anuncia o encontro. Será numa praça. Numa praça real onde predomina um
casal de pedra, um casal imenso, um casal poderoso que, há anos permanece bem
próximo, mas imóvel. Preso pela arte e pela criação do escultor, mas impossibilitados
de se tocaram ou de olharem-se por outros ângulos. São estas duas estátuas que
formam este casal na praça que erroneamente é chamada de “Praça do Homem Nu”,
que o encontro tão desejado é marcado.
A
trilha sonora, nos momentos iniciais, com tristes músicas sertanejas, saudosas,
vai, aos poucos ganhando os toques da tecla de um solitário piano, depois, o
som de um acordeom, ainda mais triste.
Parece
ser o começo de uma tarde de domingo. A praça quase vazia e povoada por gente
ainda mais sem esperança – dois vagabundos, dois bêbados, talvez – que agridem
e tocam uma mulher que por lá passa, sequer imaginam que, dentro de poucos
instantes, uma possível história de amor vai acontecer ali.
Passa
um ônibus, um bi-articulado. Um ônibus que sempre carrega diariamente tantos
sonhos, dores, pesadelos, esperanças. O ônibus passa e, ao fundo, o homem parece
indeciso ao atravessar a rua e caminhar para a praça do homem de pedra que está
despido de qualquer vaidade. Para sua praça, onde ele, embora vestido de um
jeito todo simples, sente-se despido de coragem, de uma vaidade que desconhece,
de um pudor que jamais se viu defrontado.
Outro
cigarro é aceso. E a fumaça assinala e faz contraponto com o olhar perdido, um
olhar com um certo medo, com uma certa angústia. Será que a mulher que fez o
anúncio na rádio vai aparecer? Ele vê uma mulher sentada num banco. Outra, que
vê a cena de longe e não consegue dar mais nenhum passo, equilibrando-se num
salto que parece não lhe ser adequado. Há um homem em pé, talvez pregando
alguma nova mentira, mesmo estando com uma bíblia na mão.
O
homem que sonha está entre as duas estátuas de pedra, está entre imensos blocos
de granito que ganharam forma humana. Mas nenhum deles tem coração. Ele vai de
um lado pelo outro levando em suas mãos o cigarro que assinala um movimento
efêmero, que dá sinal de existir e desaparece no ar.
Entre
um homem e uma mulher de pedra, aquele homem de verdade espera encontrar-se com
uma mulher de verdade. Que ela tenha um coração pulsante e realmente desejoso
como o dele. Que pulse esperança. Que pulse amor. Que exista mesmo e não tema
nada deste insólito encontro.
O
homem percebe que a mulher está um pouco afastada. Ela, a mulher de verdade,
esconde-se atrás de um homem imenso de pedra, um homem que não tem coração, nem
respira, nem move-se para apreciá-la.
O
homem, assustado com aquela real presença, vai se proteger atrás de uma mulher
de pedra, que está sentada e que nem percebe, também, que ele quer que tudo
ali, naquele instante, seja verdadeiro e pulse numa dimensão jamais sonhada.
Com
sua cabeça que quase chega a roçar, suavemente, o seio daquela imensa mulher de
pedra, ele vê, ao longe, uma mulher de verdade que o olhar, agora, de verdade,
com um olhar tão lindo por ser um olhar também com um certo espanto, com um
certo medo. Um olhar de surpresa da possibilidade estar mesmo se tornando
possível, real.
Nenhuma
palavra precisa ser dita. Os olhos dizem tudo, pedem tudo, desejam tudo. Com o
cigarro nas mãos, num gesto de insegurança ele avança depois de passar pelos
seios da mulher de pedra. A mulher real, de verdade, dá passos lentos e
posta-se quase entre as pernas daquele homem de pedra, com sua cabeça quase
tocando o seu imenso e sugerido sexo.
A
música da sanfona fica mais forte e o piano dita o ritmo que permanece lento,
sem nenhuma dinâmica que possa indicar que os dois – o homem e a mulher – vão correr
para um abraço tão desejado.
Os
olhos da mulher esboçam, junto com um discreto sorriso, uma alegria. Mas o
homem e a mulher, a seu modo, caminham para se encontrarem exatamente no espaço
entre uma mulher e um homem de pedra. Sim, o casal que não tem coração,
emoldura o encontro de outro casal que quer dar novo ritmo a seus corações. A
vida ganha novos contornos quando emoldurada por seres inanimados que de
coração nada entendem. Nem de amor, nem de ternura, nem de carinho, nem de
vida, nem de morte, muito menos de sexo.
Ali,
então, no ponto exato onde há um marco que registra a razão daquelas duas
esculturas, naquele exato ponto registra outro marco e que é a razão de um
homem e de uma mulher estarem se dirigindo, um para o outro, no encontro de
seus destinos.
Vê-se,
então, que não trocas de palavras, mas os olhares percorrem os corpos de cada
um, na visão de que um tem do outro, de como enxergam o que realmente, que tipo
de pessoa – um homem e uma mulher – estão se encontrando pela primeira vez. A
atriz Sílvia Patzsch, expressivamente brilhante com seu olhar imenso, tenta
segura a alegria de um sorriso que teima em aparecer e que, por medo, talvez,
faz com que ela prenda sua vontade de gritar e dizer: eu encontrei meu grande
amor. Ele, o homem também esboça um tímido sorriso. Ela, por sua vez, engole
seco. Mas seus expressivos olhos, agora, brilham intensamente e levam para o
olhar a alegria que a boca, discretamente, demonstra estar vivendo.
O
homem estende a mão. A mulher, tímida, dá a sua. Ele olha para o outro lado. E
sugere que caminhem para a outra direção. Os corpos, antes retesados, tensos.
Agora os corpos estão relaxados. Ele, leva as mãos à cabeça. Faz um gesto de
não estar acreditando que encontrou seu grande e definitivo amor. Caminham pela
praça, tendo como moldura, uma mulher sentada e os pés de um homem, todos de
pedra.
Eles
caminham descontraídos até o final da praça, o limite da avenida. A avenida que
os levará para um amor de fato.
Na
foto impressa num prato de porcelana, entre corações almofadados, registra um
amor de verdade. Um amor eterno. Um amor para sempre. Atrás da cabeceira da
cama, que é real, o homem e a mulher, com roupas de noivos, estão ali, para sempre.
Eternamente. Sobre a cama, presentes
saídos de uma loja popular de R$ 1,99. Mas seus corações estão felizes demais
para eles terem que desvestir seus trajes do dia em que formaram o casal mais
feliz de uma incerta cidade que o olhar preciso de Beto Carminatti criou com
tanta poesia.
Rogério
Viana
23
de dezembro de 2011
Depois
de assistir, pela terceira vez ao curta “Eternamente”.
Obrigado Rogério... fiquei feliz em ler estas palavras tanto tempo depois.
ResponderExcluir