sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Uma roda, uma ciranda de mal entendidos.

Alguns personagens, ao seu tempo, antecipam certas falas que, em um outro momento, num tempo futuro - o futuro é hoje onde vivo - são réplicas necessárias, mesmo quando foram declaradas em um tempo já passado. Em abril de 2010, num final de semana, surgiram os personagens Anália, Matheus e Ricardo. Eles estão na peça "Da palavra não dita à palavra mal dita". Não são apenas um jogo dramatúrgico. Poderiam ser - quem sabe - a expressão de algo verdadeiro e real. Mas não era, nem foram assim. Poderia ter sido e são, hoje, nesta manhã, neste começo de um novo fim de semana, a condição que tenho para responder a personagens reais usando a boca, a expressão e a alma de personagens que esses - sim, esses mesmos inspiradores personagens reais - inspiraram de fato.

Vale aqui citar uma frase de Jorge Luis Borges e que, talvez, adaptando o termo "conto" por ele usado por "teatro" poderemos brincar com essa mistura de realidade e ficção, de verdade e mentira. Diz Borges:

"Se os personagens de um conto (teatro) podem ser leitores ou espectadores, então nós, seus leitores e espectadores, podemos ser fictícios".

Muitas vezes a voz que narra não é a voz do autor. Pode ser que a voz do autor seja, de verdade, a voz do personagem que narra. Mas até que ponto a voz do personagem atinge (e contamina, influencia) a voz do autor? Ou a voz do personagem já sai marcada por uma influência que o autor, por sua vez, não identifica em si próprio de onde e porque ela sai assim.

Em "Da palavra não dita à palavra mal dita", Anália, Matheus e Ricardo, instâncias de si mesmos em expressões de possíveis seres reais, exercitam uma troca de vozes. Uma quase suruba verbal, numa roda, ciranda de mal entendidos. De agressões, provocações, dedo na cara, repulsa e atração. Há vozes neles que aparecem contaminando (desvirtuando, comprometendo, interferindo) suas próprias vozes, ao passado que outras vozes também sofrem um desvirtuamento comprometedor. Mas, no resumo, na síntese de tudo isso, vozes que são o que não aparentam ser, são apenas vozes e nada mais. Ou seriam algo mais? Vejamos então:

Na cena A IMPROVÁVEL TROCA, está assim:

(...)


Matheus – Sua voz é sua mesmo, ou é de quem?
Anália – Acha justo falar pelos outros, ou com a voz dos outros, não evidenciando sua própria voz?
Ricardo – Aqui quem faz perguntas sou eu...
Matheus – É sua voz agora?
Anália – Está se escondendo. Ocultando sua própria voz?
Ricardo – Aqui quem pergunta sou eu... Que voz? Vocês estão ouvindo alguma outra voz que não a minha? Naquele lugar distante ele olhou para seu próprio umbigo e queixou-se: ainda aqui? Por onde você tem andado? Precisa se apressar. Já é quase de manhã...
Matheus – Dito e feito. Mudou de voz. Mudou, claro que mudou. Uso indevido de outra voz.
Anália – Não tem o mesmo timbre que a sua voz. Outro feitio, outro timbre, tom, cor. Você atravessa assim, sempre?
Matheus – Como permite isso? Como usa uma voz proibida? Aqui, no processo, é algo muito grave.
Ricardo – A voz que fala não é a voz que pensa. A que pensa é muda. A que vê é cega. A que fala, não ouve. A que comanda, está surda. Cegos, surdos e mudos. Em cada vez, em cada ação. Pensar é agir? Não! Falar é agir? Ação é palavra? E a palavra, onde fica? Respondam! Ainda bem que você me acordou. Tinha perdido completamente a noção do tempo. Foi tão bom estar aqui. Vendo seu corpo, sentindo seu perfume. A maciez de sua pele. Sua bunda...
Matheus – Mesmo assim, é uma afronta confundir isso aqui. Você não tem o direito de se por em defesa de quem não pediu sua ajuda. É uma intromissão inominável.
Anália – É um total descaramento, usar essa máscara... Ainda mais com tantas vozes diferentes.
Ricardo – Quero que vocês respondam. Ninguém aqui, agora, aqui, no presente instante, pode furtar-se a não ser o que é, nem a falar o que não deve, e não deve, em hipótese nenhuma, confundir-se com o que está bastante claro. Minha querida, minha querida. Seu cheiro está em meus dedos... Que gostoso é seu gosto.
Matheus – No primeiro depoimento você escreveu que era um rei de si mesmo, seu próprio lacaio e que se julgava Deus. Pode explicar?
Anália – Você ouve vozes? Dá ouvido a elas? Dá vez a elas? Vez e voz?
Ricardo – Cala a sua boca! Você não sabe o que diz. Como posso esquecer o que você fez a noite toda? Nem senti o tempo passar.
Matheus – Que porra de audácia é essa? Manda calar a boca assim, numa boa? Ponha-se no seu lugar, seu filho da puta bastardo!

(...)

Então tá! Fica assim, o dito pelo não dito. Mas a palavra final, não a minha, mas a que empresto do personagem Matheus é o que eu assumo e tenho dito!

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