domingo, 8 de janeiro de 2012

Quem traduz trai a palavra ainda não escrita

Certos vinhos descem como se fossem um tango aveludado,
dos fortes, antigos, inesquecíveis em seus toques de madeira envelhecida,
do piso onde bailaram tantas almas inquietas.

Meu mais recente texto de teatro - FALSOS COGNATOS - o décimo sétimo que escrevi e que completa 30 textos dramatúrgicos quando somados às treze traduções que fiz de autores de língua espanhola, tem referências a esses textos e a alguns desses autores.

Falsos cognatos, afinal, o que são?

Conhecidos, também, por falsos amigos ou falsos conhecidos, os falsos cognatos são palavras normalmente derivadas do latim que aparecem em diferentes idiomas com ortografia semelhante e que tem, portanto, a mesma origem, mas que ao longo dos tempos acabaram adquirindo significados diferentes.

Nesse novo texto, os falsos cognatos, os falsos amigos ou os falsos conhecidos, são, também, personagens que supomos conhecer, personagens que supomos serem amigos - nossos, a princípio, mas, também, amigos entre os demais personagens. Filhos, talvez, de um mesmo pai - pode ser um pai mau caráter, quem sabe - como podem ser filhos bastardos, filhos de uma mãe com passado pouco recomendável. Mas, esses personagens, marcados por origens mal explicadas, frutos, quem sabe, de relações não convencionais, verídicas ou mentirosas, em certos momentos estabelecem outras relações, trocam de papéis, invadem searas alheias. Traduzindo palavras, antecipando palavras, indo do futuro para o passado, quem traduz trai a palavra ainda não escrita.

Os falsos cognatos, fingem serem conhecidos uns dos outros enquanto personagens, mas estão mais para falsos amigos que para amigos reais e verdadeiros, neste jogo de cena onde a palavra e o papel que ela representa tem mais peso.

Os personagens são:


Pedro o tradutor, também personagem de si mesmo.

Juan o autor/bailarino, também autor de si mesmo.

Letíciaa musa/bailarina, sempre ela e outras.

Déboraa intérprete/tradutora da musa, nunca ela, sempre outras.



Aqui, os primeiros diálogos do texto:


Falsos cognatos

(Apenas quatro cadeiras. A luz pontua verticalmente a presença e a fala de cada personagem. Em certas cenas uma luz ampla que aparece e desaparece, sempre, em resistência. Não haverá cores nas luzes. Haverá interferências, quando necessário. Serão indicadas quando. Um texto está nas mãos de algum dos personagens. O texto troca de mãos, no ritmo e na evolução do próprio texto, na evolução dos quatro personagens. O texto – o papel do texto – é o quinto personagem. Ou sugestão dele.)

1 - O tango que dança numa taça de vinho

Letícia – Não foi isso o que combinamos. Não era isso o que estava escrito nas rubricas.

Débora – Você sabe como são os homens quando envelhecem...

Letícia – Não está escrito assim, como você disse...

Débora – Todos ficam insuportáveis. Nenhum melhora com o passar do tempo. Nenhum...

Letícia – Você pode, pelo menos, prestar atenção nas rubricas?

Débora – Se fossem como os vinhos... Ou como um velho tango...

Letícia – Tenho que repetir? Não foi isso o combinado antes. Nem é isso o que o roteiro aponta. As rubricas, por favor, preste atenção nas rubricas pelo menos!

Débora – Certos vinhos descem como se fossem um tango aveludado, dos fortes, antigos, inesquecíveis em seus toques de madeira envelhecida, do piso onde bailaram tantas almas inquietas.

Letícia – É assim? É assim que quer me levar para dentro de sua história?

Débora – Aquele tango que ficou preso entre as paredes cor de malva, a fez surgir entre a fumaça de tabacos intragáveis. Seu vestido era bordô, intenso. Na taça encardida de muitas mãos e bocas, ele escorreu lento. O tempo não o fizera se acomodar em intenções boas. Não. Era uma presença que diluía todas as atenções. Cada olhar era um gole lento. Cada passo, quase um engasgo. Cada volta, o bordô, que rolava decidido entre as bordas do copo, naquela esfumaçada sala de tantos pecados, marcava sua presença.

Juan – Estou olhando para o que você escreveu e quase não me contenho. Tenho que chorar. Ou tenho que rir? Não, não me leve a mal. Por favor, entenda...

Pedro – Leio o que você escreveu e tenho tantas dúvidas. Certas palavras não me soam bem. Soam muito mal, se quer saber. Muito mal. Mas estão escritas no seu idioma. Não no meu. Portanto...

Débora – Certas mudanças não cairiam mal. Mas...

Letícia – Ainda quer que eu nada entenda?

Juan – Ela não devia ter feito a pergunta. Entende isso?

Pedro – Mas eu não sei o que entender com o que foi dito... Tem algo estranho nas suas falas. Parece ser um código. Percebe?

Débora – Mas a cor de vinho tinha que ter também o gosto do vinho que tanto tempo esperou para ser degustado? Não era apenas para ser apreciado com o olhar? No máximo pelo seu olfato?

Letícia – É muito delicado acompanhar cada linha. Cada surpresa que não foi criada antes, mas que aparece diante de suas reações. Você tem noção do que disse Clarice Lispector? Ela disse: Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.

Juan – É interessante isso. Reconheço. Mas aqui há outro contexto e Elsa teria dito de outro modo. Se fosse dito por Patrícia, então, teria outros contornos poéticos. Você sabe. As mulheres sempre podem surpreender quando dizem assim, quando está aparentemente claro.  Mas...

Pedro – Isso tudo me intriga. Esmagar as entrelinhas com palavras. Seria por esse motivo que os autores dão mais espaço entre as frases quando devem colocar entre elas, as tais rubricas? Não é hora de divagar e tenho que tocar em frente. Não dá, agora, neste momento, para parar. Tenho um prazo para cumprir. Você sabe do que estou falando. O pessoal que redigiu o edital não costuma dar prazo para bobagens, devaneios. O tempo exige pressa. E pressiona o espaço aqui do seu texto, percebe?

Letícia – De novo o que aparece aqui no meu roteiro não é seguido por você. Eu reforço: pelo menos acentue o que diz as rubricas. Pode ser?

Débora – Eu tinha que me despir daquela sufocante pele cor de vinho. A cor já me deixava embriagada. É isso mesmo! Embriagada.

Letícia – Uma luz ampla, irrestrita, surge. Não forte. Ela vem devagar, mostrando todos nós – digo – todos vocês ao mesmo tempo.

(...)

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