quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

As veias da América Latina, na voz de uma certa Susana

"Mas a música daqueles anos distantes
ainda ecoam na memória do velho rádio fronteiriço entre
tangos, tragédias, boleros, bossa nova e
baionetas."
(Fala de Susana em "Eu Avec Você")

No meu texto "Eu Avec Você", dois personagens - Gabriel, numa cidade ao sul do Brasil e Susana, em Paris, dialogam entre si e com suas vozes internas, personagens que habitam suas memórias, suas lembranças, seus afetos.

Susana é argentina e mora em Paris onde é autora, diretora e professora de Teatro. Gabriel é autor de teatro, um brasileiro que nunca saiu daqui. O que separa os dois personagens vão além das três horas de diferença do fuso horário, das culturas em que vivem, dos espaços que compartilham. Mas...

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Susana – As veias da América Latina, ainda bem, são irrigadas por uma água doce que vem do lado nordeste da grande cordilheira. Ainda bem que elas chegam até nós, que passam por terras e lugares tão distintos. Que dão a beber a gente tão especial e tão diversa! Ah, não sei mais cantar nada em português! Meu francês tenta apagar até meu espanhol. Ele é forte, resiste. Rire, rage et resistance. Mas o português, ainda uma língua indecifrável, veio até mim em pequenas levas. Antigas canções. Belas vozes. Tinha mais alegria que nosso dia a dia portenho. Isso tinha mesmo! Nada que me fizesse dominar centenas de palavras. Mas a música daqueles anos distantes ainda ecoam na memória do velho rádio fronteiriço entre tangos, tragédias, boleros, bossa nova e baionetas. Quanta raiva, quanta raiva! Era preciso resistir a tudo. Além do mais, além do mar, também, temos muita gente que vive de costas para o oceano azul esverdeado e de frente para a indominável cordilheira azul e branca. Os que estão mais a leste, onde o sol nasce, também não enxergam como nós enxergávamos os platôs andinos. Os ventos calmos que sopram por lá movimentam as areias de corpos morenos, de gente mulata. Aqui, por esse lado do Sena eu posso enxergar um monumento universal. Veja só, Catharina. Aquela torre. Para o que ela aponta mesmo? Diga lá, Catharina: Você dançou mesmo sua primeira valsa com um rapaz que tinha a cara do John Lennon? É mesmo? Bem, eu não cheguei a pedir um autógrafo. Eu só o vi de longe. Também, como eu ia conseguir pagar por um lugar mais próximo do palco? Mas eu vi todos os quatros rapazes cabeludos. E era uma gritaria só. Minha voz sumiu por quase quinze dias. Muito tempo. Muito tempo...

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