sexta-feira, 26 de março de 2010

Este Deus que pune e mata sou eu!!!

Homem: (...)
Não quero flores! Não quero que matem as flores para perfumar com o perfume da morte a festa de minha despedida.Quero flores de papel, mas não de papéis coloridos, quero flores feitas com as páginas policiais ou as páginas sobre as tragédias, a corrupção, a violência e as guerras que os jornais publicam diariamente. (...)


Escrevi "Das Razões do Nosso Medo" em 2003 quando morava em Salvador. Foi meu primeiro texto para teatro. Escrito com todos os defeitos do primeiro trabalho, com todos os vícios de um olhar sobre o teatro e não dentro do teatro. Jornalista com larga experiência, meus textos sempre focalizaram pessoas reais. Personagens vivos - alguns estavam morrendo ou já estavam mortos quando deles escrevia notícias, editoriais, reportagens. Os primeiros personagens fictícios - será que há algum personagem fictício? - foram escritos, anos antes, em alguns contos. As histórias que eu passava a contar eram invenções, mas também eram lembranças. Eram baseadas em fatos reais, mas poderiam ser ainda o quê? Verdade? Ilusão, mentira? Esta semana eu li a peça "É..." de Millôr Fernandes, encenada em 1979, no Rio de Janeiro com Fernanda Montenegro e Fernando Torres, nos principais papéis. Sim, em "É...", Millôr Fernandes indica que o texto foi "baseado num fato verídico que apenas ainda não aconteceu". Eu já havia escrito, há tempos, que "a verdade é uma mentira ainda não vivida". Muitas vezes, sabemos, que a mentira é uma verdade não vivida. Então, o que é verdade? É o reverso da mentira? E a mentira, o que é mesmo?

Aqui, um pequeno trecho do texto "Das Razões do Nosso Medo". O medo tem razões? Há razões para termos medo? Qual a razão de tudo?

Das Razões do Nosso Medo

Drama

É um ensaio. Mas é um espetáculo. São histórias de desencontros, de medos, de indecisões. São dois textos que são encenados. São três quadros. São três personagens – um homem, duas mulheres - que trocam seus papéis. Um é homem, depois é mulher, a mulher é outra mulher, depois é a consciência, é quem dirige e orienta a atuação dos outros personagens, que são atores. A consciência sempre pode aparecer em horas inadequadas. Quando chega na hora certa, faz tudo desandar, sair do ritmo, deixar o espaço confuso e o tempo incerto. Depois o homem, que foi mulher, é a consciência do personagem que foi, que será. Aos poucos, deixando aflorar medos e angústias, invejas, loucuras, ciúmes, inseguranças, certezas e o incerto pensar sobre o hoje, o presente e o que virá, os personagens ganham vida e se revelam os próprios atores e o embate diário que eles têm na luta pela sobrevivência e pela busca do papel perfeito, eles que acabam não mais sabendo quem realmente são e, quando se descobrem, através das falas, expõe toda a fragilidade de seres humanos que fazem do instrumento da representação uma vivência de mentiras e inseguranças.

Três personagens – Um homem e duas mulheres.

(...) Continuação do segundo quadro (são duas atrizes e um ator em cena)

Mulher 2 (com a capa, provocando o Homem, insinuando)

Esta coisa de amigos que sempre estão aparecendo, de novas propostas de trabalho... Preste atenção! Você parece que não enxerga o que se apresenta óbvio...

O óbvio, no entanto, todos nós sabemos, é o que menos conseguimos enxergar ou entender. É o que mais nos afasta da realidade, do que está em nossa volta, do facilmente encontrado, mas que nos cega, imobiliza...

Homem (exasperado, tenso, desesperado)

Terei mesmo que pedir socorro? Terei mesmo que pedir socorro? Não consigo parar de pensar que tenho necessidade de pedir socorro... Mas onde estão meus aliados dentro do meu peito? Onde estão aqueles seres miseráveis que me abandonam na hora em que mais necessito deles? Onde estão estas repugnantes figuras que me impedem de gritar? Quero fôlego, quero voz, quero ser ouvido, fazer-me ouvir além dos limites deste escritório, do meu quarto, meu banheiro, nossa cama...

Quero gritar a pleno pulmões... Vou gritar, preciso pedir socorro... Ninguém me ouve?

Mulher 2 (com a capa, mexe com o homem, sacode os seus ombros, imperativa)

Preste atenção... Se quer falar, fale... Se quer gritar, grite... Solte esta emoção que o está sufocando... Solte seu grito... Solte!! Solte e grite! Grite! Grite mesmo!!!

Mulher 1 (quebra o ritmo, falando com calma e entusiasmada)

Querido... Você não acha que eu poderia fazer este trabalho com aquele meu amigo político? Eu acho que tenho mesmo jeito para o trabalho. Ele disse que a atividade política é a minha cara! Disse que tenho o espírito de saber mentir, quando digo sim ou quando digo não... Mesmo querendo dizer exatamente o contrário.

Você vai adorar-me ... Eu fazendo política. Eu, nas altas rodas, participando de insuspeitas negociações, sugerindo novas verbas, tudo o que o mundo da política realiza diariamente. E olha que os ganhos são compensadores! Poderemos ficar muito ricos num piscar de olhos...

Homem (começa a ficar agitado, o tom é de desabafo, desespero)

Não consigo enxergar uma saída. O grito... preciso dar um grito forte. Talvez entendam com um grito o que tenho a dizer, tudo o que está engasgado. São tantos sapos que engoli que agora tenho que gritar e vomitar ao mesmo tempo... Por para fora tudo o que me incomoda e machuca.

(pausa e o tom fica mais intenso, forte)

Onde estão os ouvintes, os espectadores? Onde estão as pessoas ditas de boa fé? Onde estão as testemunhas? Tudo é farsa, enganação... Não existe dó, pena, piedade, misericórdia, compaixão...Tudo são sombras, sombras da mentira e do desprezo...

Vamos... me ajudem a tirar esta trava da minha garganta... Ajudem-me a tomar fôlego e a gritar com muita força... Preciso gritar...!!! Por favor, socorro! Socorro! Preciso gritar mais forte. Socorro!!!

(As duas mulheres seguram as mãos do Homem e movimentam seus braços na medida em que ele aumenta o tom das suas palavras)

Preciso gritar, preciso gritar... não suporto este peso, tudo o que me afoga não vem de fora, vem de dentro... Esta sensação de sufocamento não é por falta de ar. Este afogamento não é pela água que invade minhas narinas, enchendo meus pulmões. Esta visão distorcida das coisas não é o meu olho míope, ou minha catarata. O coração que lateja, não é por minhas artérias entupidas. O peso que sinto nos ombros, que faz doer meu pescoço, toda minha coluna, não é do excesso de peso dos compromissos inevitáveis do dia a dia.

Os braços que tento estender, que tento abraçar algo, alguém, alguma coisa, não são impedidos pelas fraturas da diária luta, do embate com adversários mais fortes do que eu...

(Com as mãos soltas, o Homem segura o pescoço com uma mão e com a outra simular tapar sua boca. A Mulher 1 tira a capa colorida da Mulher 2 e ambas vestem-na no Homem. Enquanto ele fala, as duas se afastam, lentamente, e deitam-se na cama, cobrindo-se)

Homem (solta um grito e, depois, em tom desesperado, intenso)

O que todos querem que eu faça? Como imaginam que eu estou me sentindo neste momento? Aqui... só... com minha consciência, minhas atrozes dúvidas, minha insegurança... Meus medos, aflorando forte e me destruindo. Isso tudo que me corrói e me consome...

(simula tapar sua própria boca, depois, grita)

Vocês querem que eu morra? Querem que eu morra?? Que eu morra.!! Morra!!!

(simula tapar os olhos e fala em tom mais forte)

Vocês querem que eu morra. Se eu morrer, se eu desistir de tudo, se eu desentupir o esgoto que poderá me levar em direção ao meu inferno...? Sim... se eu descobrir que o inferno é mais prazeroso que o azul do céu inatingível...?

(simula tapar os ouvidos, continua aumentando o tom da voz, desesperado)

Alguém vai chorar? Alguém vai escrever meu necrológio? Quem vai comparecer à minha missa de sétimo dia?

(ajoelha-se, levanta os braços para cima. O tom aumenta)

Não quero flores! Não quero que matem as flores para perfumar com o perfume da morte a festa de minha despedida. Quero flores de papel, mas não de papéis coloridos, quero flores feitas com as páginas policiais ou as páginas sobre as tragédias, a corrupção, a violência e as guerras que os jornais publicam diariamente.

Flores retorcidas com as dores de todo o mundo, com as dores dos desesperados, dos inválidos, dos sem voz. Quero flores retorcidas como o destino dos que se imaginam onipotentes, perpétuos, inatingíveis e imbatíveis. Esses que agem como se fossem Deus...

(Na cama, há um movimento de corpos, simulando um ato sexual)

(Homem em tom ainda mais forte, quase um grito, levanta-se e ergue os braços)

Agem como se fossem Deus...!!! Eu sou meu próprio Deus... No meu destino, no meu futuro mando eu!!! Sou eu meu próprio Deus! Este Deus que pune e mata sou eu!!!

(um forte estampido de tiro interrompe o ato com o corte da iluminação)

Fim do segundo quadro

O texto completo "Das Razões do Nosso Medo", aqui.

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