quarta-feira, 24 de março de 2010

Noções de qualidade e de singularidade – ou como matei o meu mestre, ou ao mestre com carinho

No cenário de "Vida", antes de começar a mesa
redonda, no palco do Teatro José Maria Santos

O segundo ano do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná começou, efetivamente, no sábado, dia 20 de março, quando, numa mesa redonda - não tinha mesa, o formato da apresentação é que era de mesa redonda - Roberto Alvim, Mário Bortolotto e Gabriela Mellão, todos de São Paulo, participaram com o tema "O papel do dramaturgo no teatro contemporâneo", no Teatro José Maria Santos, com a moderação de Walter Lima Torres, professor da UFPR.

Outra matéria que completa a divulgação do evento aparece aqui, no blog de Luciana Romagnolli, do jornal Gazeta do Povo.

A informação publicada na matéria do site do SESI Paraná (veja aqui) está incorreta, pois incompleta na questão de números e participação de novos dramaturgos no projeto do SESI Paraná durante os nove meses – de abril a dezembro do ano passado, nos encontros quinzenais do Núcleo de Dramaturgia SESI Paraná acontecidos no Teatro José Maria Santos.

Num dos seus parágrafos foi publicada assim: "O primeiro ano de existência do Núcleo de Dramaturgia resultou em 16 peças, que foram publicadas pelo Sesi Paraná".

Na verdade, o primeiro ano de existência do Núcleo de Dramaturgia resultou em 30 (ou 32) peças (confiram com o Damaceno o número exato) escritas pelos 28 (ou 29) autores (confiram com o Damaceno o número exato) que concluíram a Oficina de Dramaturgia - de abril a dezembro de 2009 - coordenada por Roberto Alvim. Selecionadas entre as 30 (ou 32) peças, 16 delas, sim, foram publicadas pelo SESI Paraná. Produzidas, escritas, o dobro ou quase.

Ao colocar que o resultado do primeiro ano do Núcleo foi de apenas 16 peças publicadas, diminui-se o trabalho que os demais integrantes produziram e não revela, até, as diferenças, abordagens, enfoques, conceitos, visões de mundo, experiências individuais e outras questões que os autores-participantes produziram durante os nove meses em que trabalharam sob o comando e a orientação precisa e atilada do Roberto Alvim que destacou segundo a notícia publicada: "Os novos autores curitibanos trabalham com questões ligadas à construção do sujeito na contemporaneidade, com percepção de tempo e de espaço, de arte, de política e de existência. São questões trabalhadas autores mundiais". (sic)

Com certeza Roberto Alvim não falava apenas dos 16 autores, os que foram publicados, até porque, repetidas vezes e durante a mesa redonda ele disse aos presentes – e eu estava lá prestando muito atenção - que "não foram publicadas as melhores peças" e, mais adiante, ressaltou que, para ele a noção de qualidade é bastante elástica, já que disse preferir nos textos dramatúrgicos "menos qualidade e mais singularidade".

Assim sendo, Roberto Alvim deve ter defendido a publicação pelo SESI Paraná das 16 peças com um olho na "singularidade" e não na "qualidade", ou, para ele a noção de qualidade se amplia para atingir o status de "obra singular", ou “obra de arte”. E ponto.

Talvez fosse interessante, em termos de discussão, que o Roberto Alvim explicasse melhor essa noção de “qualidade” que ele adotou na Oficina de Dramaturgia SESI Paraná no ano passado e, assim, deixasse melhor explicado o que é mesmo a tal da singularidade.

Para ajudar no entendimento do que seja singularidade, mesmo correndo o risco de ser enfadonho, chato ou assemelhado, vai uma ajuda dada pelo mestre Aurélio:

SINGULARIDADE

[Do lat. singularitate.]

S. f.

1. Qualidade do que é singular.

2. Ato ou dito singular.

3. Extravagância, excentricidade.

4. Anál. Mat. Ponto singular.

5. Cosm. Região do espaço-tempo onde as leis da física atualmente conhecidas entram em colapso e as equações perdem o seu significado.

u Singularidade essencial. Anál. Mat.

1. Ponto singular que não é um pólo.

u Singularidade isolada. Anál. Mat.

1. Ponto singular que tem pelo menos uma vizinhança que o envolve, e na qual não existem outros pontos singulares.

A qualidade do que é singular? Sim. Então o que é singular? Insisto em ser prolixo.

SINGULAR

[Do lat. singulare.]

Adj. 2 g.

1. Pertencente ou relativo a um; único, particular, individual.

2. Que não é vulgar; especial, raro, extraordinário: 2 &

3. Diferente, distinto, notável.

4. Excêntrico, extravagante, esquisito, bizarro.

5. E. Ling. Diz-se do número (11) que indica apenas um ser.

6. Lóg. Que se aplica a um só sujeito. [Cf., nesta acepç., particular (6).]

7. Lóg. Que convém a um só dos indivíduos da espécie.

~ V. força -, integral -, juízo -, matriz -, ponto -, proposição - e solução -.

S. m.

8. E. Ling. O número singular dos nomes e dos verbos.

[Cf. cingular.]

Singular é um adjetivo. Singularidade é substantivo feminino. Qualidade é outro substantivo.

O que o mestre Aurélio nos ensina sobre o que seja Qualidade?

QUALIDADE

[Do lat. qualitate.]

S. f.

1. Propriedade, atributo ou condição das coisas ou das pessoas capaz de distingui-las das outras e de lhes determinar a natureza.

2. Numa escala de valores, qualidade (1) que permite avaliar e, conseqüentemente, aprovar, aceitar ou recusar, qualquer coisa: 2 2

3. Disposição moral ou intelectual das pessoas: 2

4. Dote, dom, virtude: &

5. Condição, posição, função.

6. Deprec. Espécie, casta, laia: 2

7. E. Ling. Combinação das freqüências sonoras que compõem uma vogal, as quais são determinadas pela posição dos articuladores móveis, tais como a língua e os lábios, dentre outros; qualidade vocálica. [ V. quantidade (4). ]

8. Filos. Na metafísica tradicional, categoria fundamental do pensamento que designa os modos diversos como as coisas são.

9. Filos. Na perspectiva dialética, categoria fundamental que designa a diversidade de relações pelas quais cada coisa, a cada momento, vem a ser tal como é. [Cf., nas acepç. (8 e 9), atributo (9), quantidade (7) e relação (8).]

10. Lóg. Caráter assertivo (negativo ou afirmativo) de uma proposição.

11. Bras. Rel. Variedade, dotada de traços pessoais distintivos, de qualquer das entidades [ v. entidade (6) ] do panteão religioso afro-brasileiro, que a faz detentora de denominação especial: 2

"menos qualidade e mais singularidade"

A preferência de Roberto Alvim pela “singularidade” contrapondo-se à “qualidade” pode ensejar discussões acaloradas, desde que as pessoas queiram “discutir” essas particularidades que certas palavras carregam.

Qualidade, digo, a palavra qualidade pode significar tantas coisas, pode ser interpretada de tanto jeito diferente. O que me deixou intrigado com a afirmação do Alvim de que prefere “menos qualidade e mais singularidade”, parece-me que ele estabeleceu um tipo de “paradoxo”. Se a tal singularidade é “a qualidade do singular”, qual, então, seria a “qualidade da qualidade”? Ah...! Você poderá dizer que o substantivo “singularidade” tem o “adjetivo” singular. Mas o substantivo “qualidade” não tem – pelo menos eu desconheço – um adjetivo nascido dela.

Um pouco mais. Se pegarmos, literalmente, a primeira acepção da palavra “qualidade”, vemos assim escrita e definida: “Propriedade, atributo ou condição das coisas ou das pessoas capaz de distingui-las das outras e de lhes determinar a natureza”.

Quando Alvim declarou em alto e bom som que dá preferência a “menos qualidade e mais singularidade”, lá naquela mesa redonda com o Bortolotto e a Gabriela Mellão, ele quis dizer mesmo o quê?

Talvez, sim, estou escrevendo talvez, a qualidade da qualidade de Alvim poderia então, ser algo que fosse uma propriedade, um atributo ou condição de uma coisa – da tal singularidade referida acima – ou das pessoas capaz de distingui-las das outras e de lhes determinar a natureza, ou a tal qualidade da qualidade? É uma pergunta que estou tentando ver/ler nas palavras (escritas) por Alvim ou ouvi-las/senti-las de sua própria boca.

Tenho que confessar é uma coisa muito intrigante deparar-me com essa coisa de “menos qualidade e mais singularidade”.

Ainda, levando ao pé da letra o que foi dito e o que o significado do que foi dito possa ter sido dito sem ter sido, de verdade dito e, assim, ficando o dito pelo não dito, ou seja lá o que isso possa significar mesmo, começo a buscar um entendimento da tal afirmação.

Para entender, claro, temos que refletir – filosofia barata, com certeza. E para que a mágica do ato de filosofar, mesmo em botecos, aconteça, é necessário formular algumas perguntas:

No entendimento do Roberto Alvim, menos qualidade - mais singularidade pelo que singular é - pode significar “mais único, mais particular, mais individual”?

Ou, pode ser entendido como “não vulgar”, portanto, “mais especial, mais raro, mais extraordinário”?

Seria aquilo que é “mais diferente, mais distinto, mais notável”?

Isso nos leva - me leva, em particular - a perguntar: é uma opção pelo “mais excêntrico”, o “mais extravagante”, o “mais esquisito” e o “mais bizarro”?

Na lógica, a tal palavra “singularidade” ensina que é o “que se aplica a um só sujeito”. E, também, aquilo e tal e coisa, “que convém a um só dos indivíduos da espécie”.

Se a singularidade se aplica a um só indivíduo, um coletivo não poderia ser singular. Talvez a tal qualidade – o singular – aconteça pela reunião de indivíduos tão singulares, tão diferentes entre si, tão especiais, tão esquisitos, excêntrico, bizzaro que, talvez, estou ressaltando, talvez, possam ter uma mesma feição, com traços similares – não iguais – aos da expressão “alviniana”.

Talvez, aí, depois de viagens filosóficas e o uso do “control C – control V” para não ter que digitar o que a fria letra da lei dos significados das palavras usadas em nossa língua nos ensina, poderia ter chegado a uma conclusão.

Mas, mesmo concluindo, terei que jogar mais perguntas, pois a essência da arte de filosofar é perguntar.

Então, ajude-me com sua resposta, meu querido e inestimável mestre Roberto Alvim.

Você que provocou em mim aquela mesma sensação que você teve quando, numa certa madrugada, em São Paulo, naqueles primeiros dias na capital paulistana, na sacada – seria na varanda ? - do apartamento do Peréio teve que se conter para não empurrá-lo sacada abaixo, sim, você disse que teve que se conter para não empurrar o Peréio lá do alto daquele prédio e que, ao se conter, teve um tipo de iluminação e escreveu seu “Anátema”, uma obra de seu amadurecimento como autor e diretor.

Então responda, mestre Alvim, ao matar, simbolicamente, claro, o seu mestre, ou um mestre, você encontrou o seu caminho para atingir o singular? Aquilo que “convém a um só dos indivíduos da espécie”? Sim, da espécie de pessoas, seres humanos, ou da espécie de escritores, dramaturgos?

Para esclarecer: eu nunca tive vontade de empurrar o Alvim prédio abaixo, nem matá-lo. Claro que não!

Mas, acreditem, eu o matei. Eu matei o Roberto Alvim. Matei mesmo!Mateio-o como meu mestre, já que, diante de tudo o que de importante ele me mostrou – aos outros participantes também, espero – e de tudo o que ele me provocou, me exigiu, me induziu a pensar, me ensinou a pesquisar, estudar, resultou numa enxurrada de ideias, não uma simples enxurrada, mas o rompimento de um enorme represa, fazendo com que tudo aquilo que estava represado em mim há 60 anos, começasse a vazar, a fluir rio abaixo. Sim, vazei-me como pessoa na forma de palavras, de sete peças de dramaturgia que escrevi desde então e que, a partir de certo momento, é uma de minhas principais motivações como pessoa.

Sim, eu matei o Roberto Alvim, matei mesmo. Matei-o como meu mestre.

E a partir de então, começo a trilhar os caminhos que a mim se abriram. Caminhos difíceis. Pedregosos. Íngremes. Desafiadores pelo que de desconhecido eles tem. Caminhos de incompreensão, de dúvidas. Muitos medos. Desilusões. Todos os afetos que, por serem da vida, do humano, me fazem acreditar no que é possível ou no ser possível.

Tem uma frase dita pelo mestre Matsuó Bashô – aquele mestre dos haikais - que diz mais ou menos assim: “Não siga os antigos. Procure o que eles procuravam”. Não faça o mesmo que seu mestre fez e faz, procure o caminho que ele procurava. Sim. Talvez ir por outros caminhos, buscando o que os mestres buscam sempre.

Mas, há também, uma frase, bem no estilo nordestino – olha só 50% do meu sangue baiano aqui: “Qual caminho vou percorrer? Ah... eu vou pelo outro”.

Atingirei o que, com ele?

Sabe que não sei!

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