quarta-feira, 14 de abril de 2010

O altruismo e a "teoria do parentesco"


Admitir que a organização social é uma função do ser vivo é reconhecer que ela é, como tudo que vive, regida pelas leis da evolução e produzida pela seleção natural. Para M. Ghiselin, sociobiologista insígne, "a evolução da sociedade corresponde ao paradigma darwiniano na sua forma mais individualista [...] A economia da natureza é concorrencial de parte a parte. Compreender esta economia e o seu funcionamento é por em evidência as razões subjacentes dos fenômenos sociais. São os meios que permitem a um organismo obter vantagem à custa do outro [...] Se melindrar um altruísta, verá a raça de um hipócrita." Todo comportamento animal e, por isso, também todo o comportamento humano, se fundamenta no interesse individual.

Esse individualismo desenfreado, que os naturalistas designam pelo termo de altruísmo, consiste, com efeito, para os representantes de certas espécies, em sacrificar vantagens imediatas, e por vezes até a sua própria vida, a fim de obterem benefícios superiores. O exemplo citado com maior frequencia é o das abelhas obreiras que, ao picarem um intruso, pagam com a sua própria vida a defesa da colmeia. Os fundadores da teoria da evolução viam nesse comportamento a expressão da seleção de grupo, que contribui para o bem da espécie. A descoberta do genoma e do tesouro precioso que encerra, sob a forma de DNA, faz que se considere hoje a seleção individual como o verdadeiro motor da evolução. A frequência de um gene aumenta se ele fizer crescer o valor seletivo (ou seja, o número provável de filhos sobreviventes) daquele que o possui.

Nestas condições, como explicar o valor seletivo de indivíduos estéreis, como as abelhas obreiras? Este paradoxo é resolvido pela "teoria do parentesco", desenvolvida por W. Hamilton. O que conta não é tanto o animal em si mesmo, mas os seus bens, por outras palavras, o seu patrimônio genético, de que se trata de assegurar a perenidade.

[...] Bellum omnium contra omnes, "a guerra de todos contra todos" já dizia Hobbes. Em toda parte, aluta pela vida, a concorrência furiosa pelo proveito máximo e toda essa beligerância que, sem dúvida alguma, alegra o diabo, por uma banal ambição de notário: aumentar o seu patrimônio e transmití-lo aos seus herdeiros mais aptos.

[...] A seleção natural não corre atrás de um objetivo. Nisso, ela é comparável ao diabo, com que erradamente nos obstinamos em pretender que ele persiga um único desígnio: expandir o mal.

[...] O paradoxo é que uma tal ideologia, que exalta o valor individual e a lei do mais forte, acaba por considerar o indivíduo apenas como um acessório a serviço do DNA. Confesso que meu temperamento boêmio me leva a suspeitar do aspecto "pequeno comércio" dos meus cem mil genes e a preferir o risco de vender a minha alma ao diabo, mesmo sendo ele um adversário pouco recomendável da sociobiologia.

(A abelha e o notário - Jean-Didier Vincent in "A Carne e o Diabo" - pgs. 80-83 - Forum da Ciência - Publicações Europa-América - Portugal - 1997)

...

Recentemente eu invadi uma colméia. A princípio, as abelhas não me identificaram como invasor. Talvez me olhassem com um certo desdém. Não vai oferecer perigo a nenhum de nós. Eu invadi a tal colméia para aprender como se faz mel. Sim, mel. Um tipo de néctar que os Deuses do Olimpo deveriam adorar. Sistematicamente, todos os dias, eu trabalhava, trabalhava, trabalhava e via, ao lado das abelhas obreiras, que meu trabalho começava a apresentar resultados. Tira uma sujeirinha de uma flor, espanta um mosquito, carrega, com muito esforço, a seiva de belas e perfumadas flores, atravessa um lodaçal, passa por uma floresta repleta de lobos com capa de chapeuzinho vermelho, desvia daqueles narizes enormes ávidos por inebriantes substâncias. E a rotina, diária, de muito esforço, começava a se transformar em mel mesmo. Mas, confesso, meu mel não era igual ao dos outros. Não que, na aparência, fosse tão diferente assim, mas, não sei precisar, mas era mesmo diferente do que ali se produzia.

A chefe das abelhas obreiras, certa feita, convidou-me para trabalhar para ela. Para fazer o mesmo papel das abelhas obreiras. A abelha-rainha queria produzir um tipo de mel diferente do que estava acostumada a utilizar em sua alimentação. Ela dizia: o mel tem que ser diferente, tem que ser singular. A singularidade é a qualidade que exijo. E lá fui eu, na busca daquele tipo de mel tão ao gosto da abelha-rainha, mas, advertido pela chefe das abelhas obreiras, tive que rever meus métodos de produção de mel, aprendido a custa de muito sacrifício e horas, horas, infindáveis horas de leitura dos manuais, dos livros em várias línguas que ensinavam os truques e os segredos - diria até, o pulo do gato - de como produzir um mel de maior qualidade. O que a chefe das obreiras queria? Que eu, pelo menos, fizesse um "blend" mais próximo do que a colmeia produzia. Mas o "blend" que eu aprendera não tinha, digamos assim, o requinte, a consistência e as singulares qualidades do mel das então, minhas colegas de trabalho.

Aquele zum-zum-zum, no entanto, começava a me incomodar. Como assim? A seiva que eu carrego não é a mesma? Não vem das mesmas flores? Ah, sua flor é uma flor mais simples, não percebe? Sim, eu sei. Mas flor, para mim, é flor. É uma flor matuta, meio caipira mesmo, não tinha nada refinado, não era uma papoula. Ah, as papoulas! Nem era uma rosa azul colombiana, ou uma similar vinda da Bolívia, do Peru, da Venezuela. Lembrei-me da Venezuela. Confesso que tremi. Logo uma flor venezuelana. Lá ainda se produz flor? Será que o comandante Cháves não estatizou a produção de flores por lá?

Colocando alguns questionamentos acerca do modo como se produzia o mel e como ele havia sido planejado para ser distribuído, comecei a notar que já não era mais tão bem aceito pelas abelhas obreiras, pela chefe das obreiras - havia duas chefias, uma sempre presente mas agindo só nos bastidores e outra, digamos, meramente figurativa e que assinava os lotes produzidos e dizia: Esse mel está conforme. Esse outro não. Esse está conforme, esse outro, não! Ah, havia me esquecido da abelha-rainha. Essa, empanturrada de mel, de polém e de uma geléia real especial que de vez em quando levavam a ela, não queria nem saber se havia alguma abelha fora do critério da colmeia. Muito menos se interessava se o mel de alguma era ou não diferente. Mel é mel se for singular. Qualidade é o que menos quero. Quero apenas mel singular, entenderam?

Bem, numa certa tarde começou a pegar fogo na colmeia. Um apicultor experiente foi lá e passou a fumegar aquela fumacinha que atrapalha a vida das colmeias, deixa as abelhas obreiras tontinhas e facilita a colheita do mel. A chefe das obreiras ligou-me. Venha me ajudar a apagar o incêndio, digo, ajude a diminuir o fogo, bem, venha até aqui e faça o papel de bombeiro. Espante, pelo amor de deus, até as 15 horas, esse apicultor que agora está nos atormentando. Sem ter nenhuma formação para atuar como bombeiro, ainda mais de uma colmeia fumegante, declinei do convite e... Bem, negar um favor, ou negar-se a fazer o papel de bombeiro era demais para a tal, eu disse, a tal colmeia, entenderam?

Depois de justificar minha negativa, a chefe das obreiras caiu de pau em mim. Disse que eu estava atravessando, que havia invadido a colmeia e coisa e tal. Como não estava muito contente com o método de trabalho e o sistema de avaliação da minha produção de mel - olha, produzi muito mel, muito mesmo, uns 8 galões com um blend meu, simplório, e dois galões com um blend franco-argentino - não me contive e mandei um beemail desaforado. Afinal, eu já me sentia fora mesmo da tal colmeia. O que eu ia perder? Acredito que nada. Pois eu já tinha os 10 galões de mel - com um blend simplório e com outro ulalá - eu não deixei por menos. Abri o bico e critiquei a colmeia, não as abelhas obreiras. Critiquei a chefe das obreiras e, indiretamente, deixei em suspensão o comportamento da abelha-rainha. Aquela, empanturrada, de novo, de pólem. Muito pólem...

Dias depois, anunciaram na imprensa oficial da colmeia que eu estava excluído das atividades produtivas de mel. Mais que isso, foi transmitido ao exército das abelhas obreiras, agora travestidas de militância armada, coisa e tal, e elas vieram em cima de mim com a conhecida fúria das abelhas. As que foram treinadas não apenas a produzir mel, mas a defender a colmeia com unhas e dentes e, me esqueci do detalhe, com o ferrão que trazem nas suas nádegasdasbundas. Que alvoroço, que suplício, que tragédia, que bafo! Que bafo, mano! Nem te conto!

Alguns dias se passaram e eu, que havia invadido a colmeia daquelas abelhas, fui olhar no espelho e percebi uma coisa que havia passado em branco. Eu bem que devia ter olhado antes para o espelho. Bem que eu devia mesmo. Foi então que notei uma coisa que, somente agora classifico como fundamental: de abelha eu não tenho nada. Nem ferrão nas nádegasdasbundas eu tenho. Nem sou chegado a pólem. Mel e geléia real, sim, são um tipo de alimento que está em minha dieta. Mas, a seiva que eu carregava, diariamente e levava para aquela fábrica de mel, não era transportada por mim como uma abelha. Sim, eu pegava das flores a tal seiva. Mas eu não tinha cara de abelha, nem de pretendente a chefe de obreiras, muito menos de abelha-rainha. Foi só depois dessas considerações tardias que eu vi que eu não era um parente das abelhas, nem de longe. Eu era apenas um beija-flor. Sim, um beija-flor, um cuitelinho que aprendeu a beijar flores e fazer da seiva de cada manhã seu diferente tipo de mel.

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