quarta-feira, 27 de abril de 2011

"A boca amordaçada", cena breve de Patricia Zangaro

Talvez alguém se apiede e com a pedra
mais pesada esfacele minha cabeça...
O texto abaixo, "A Boca Amordaçada", uma cena breve, estreou com tradução em francês de François Thanas, no Festival de Avignon em 1999, e no mesmo ano no Festival Internacional de Buenos Aires, dentro do espetáculo “A Confissão”, com direção de Michel Dydim e Veronique Bellegarde. 

Em Buenos Aires foi interpretada pela atriz Cristina Banegas. 

Esta versão em português fiz a partir do original em espanhol que me foi enviado pela autora Patrícia Zangaro.

A boca amordaçada

Patricia Zangaro
  
Uma mulher envolta em um trapo escuro.

Mulher – Tenho quarenta anos. Meu nome... prefiro não dizê-lo. Mesmo que você veja esta ruga, como um corte em minha cara, ainda tenho as carnes de uma menina. É bem verdade que os filhos devoraram meus seios... e que meu ventre é um campo de batalha... Porém minha pele se aquece com a menor carícia... Talvez você queira enfiar sua mão embaixo de minha blusa... se isto fosse permitido... Eu lhe disse que tenho quarenta anos? Meu pai colocou-me o nome de sua mãe, que também era o de sua avó... Prefiro não dizê-lo, se isto não o chatear... Já lhe falei do meu marido? Tem o cabelo grisalho... Sua cabeça... já era branca no dia do casamento... Fui sua esposa aos quatorze anos... Eu tinha o cabelo preto... uma trança oleosa até as coxas... Ele, porém, sempre teve o cabelo grisalho... e uma casa, com um curral e cabeças de gado... Meu pai quis que meus filhos fossem criados gordinhos... E assim foi... Graças ao meu pai tenho um bom marido... Não sei se lhe disse que meu marido era viúvo... Sua mulher morreu no parto... Eu não morri em nenhum... Magnífico tinha nove anos quando se festejava meu casamento... Eu lhe disse que Magnífico é meu enteado? ... Nove anos e o cabelo bem preto... Cresceu quieto pelos cantos... Seu pai o mandou certa tarde, matar e cortar porcos... Era um homem quando voltou sujo de sangue... Abraçou-me no tanque enquanto o banhava... Desde então o tenho procurado às escondidas do seu pai... os primeiros dias com vergonha... os últimos anos desesperadamente... Nós nos amamos na penumbra, com desejos rápidos... a boca amordaçada... Chorei algumas vezes... por culpa... muitas vezes de medo... porém as outras eu chorei de desejo... uma espada afundando entre minhas pernas... E sempre encontrei alívio no corpo às escuras com Magnífico... Eu lhe falei de sua serpente em chamas? De suas enfiadas e sacudidas? Você imagina um gato eriçado em suas entranhas? Ou a dentada cega de um javali? Nunca meus lábios estiveram tão macios, nem tão inquieta minha cintura... Nunca antes... Com meu marido... devo confessar-lhe... Nunca com estes espasmos... nem a pele indiscreta... nem o riso solto... Ser um homem tão bom... com o cabelo tão grisalho... tem olhos de chicote... Vai querer saber se estou arrependida... às vezes... pelos meus filhos... que sofreram... Eu os fui esquecendo na paixão surda de Magnífico... Conheceram sopas frias, nádegas queimadas e piolhos... O menor chora às noites... Tem o cabelo bem preto... Eu gostaria de poder abraçá-lo agora... mas é tarde. Amanhã, em plena praça, vai assistir a execução... não são coisas que uma criança possa ver... Não acredita? Seu pai disse que é um bom exemplo... O obrigará a ver até o fim do suplício... Nos amarrarão juntos um ao outro... Sentirei a respiração de Magnífico quando o carrasco levantar seu braço... e nos olharemos antes que sobre nós caia a pedra... Uma pedra afiada me arrancará os seios... Meu filho vai desejar virar a cabeça, porém seu pai o obrigará a cravar seus olhos pretos nos meus... Vai me destroçar lentamente a pedradas e ainda vai me doer o sexo esfolado de Magnífico... Vão me arrebentar os olhos e a boca... Vou me afogar em meu próprio sangue... E como não morrerei, terá meu filho que contemplar minha agonia... Talvez alguém se apiede e com a pedra mais pesada esfacele minha cabeça... Tenho pavor da dor... Desde pequena chorava quando era castigada... Poderei suportar o tormento com honra? Os olhos do meu filho você sabe, me afligem... Porém mais me aflige que depois do martírio e da morte, nunca... nunca mais... poderei gozar do corpo de Magnífico...


Nenhum comentário:

Postar um comentário