sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Família em três tempos – Fábulas com um pé na irrealidade

Três tempos, três famílias, um só destino: Brasília

Evilásio levantava às 4h00 e, antes da 7h00 já estava na porta da fábrica, na fila para bater o cartão ponto. Isso, há 15 anos. Sem perder um dia só de trabalho. Sem tirar férias – vendia para comprar tijolos, cimento, cal. A casa, aos poucos ia ficando maior e a família também. Já tinha três filhos. Dois deles, assim como seus cunhados, dois irmãos, o sogro, seu pai, três tios e vários sobrinhos, eram todos operários. Metalúrgicos, sim senhor. O menorzinho, aquele que vivia no mundo da lua, queria ser artista. Gostava de ouvir rádio. Já ouvira falar em teatro, mas nunca havia assistido a uma peça. No velho televisor que vivia cheio de fantasmas, ele assistia às primeiras novelas da TV brasileira. O rádio, sempre presente, inundava a cabeça dele com imagens e belas vozes.

Ernesto levantava um pouco mais tarde. Morava perto da fábrica, numa favela. Bem pertinho das 7h00 já estava na fila pronto para bater o ponto. O mais novo de seis irmãos e quatro irmãs, eles operários, metalúrgicos, sim senhor. Elas, uma desempregada, as outras quase casadas com metalúrgicos. De outras fábricas. Sua família viera do Nordeste há 20 anos. Ele tinha morado em Santos. Vendia quebra-queixo e cocada nas beiradas do porto, na orla, de vez em quando. Não gostava de rádio, mas adorava ouvir os estivadores conversando. Quando falavam em “comunismo”, ele logo achava um jeito de ficar mais atento. Levou algumas palavras de ordem para a metalúrgica. Com menos de 30 anos, deixou o batente pesado e virou diretor do seu sindicato.

Eduardo levantava cedo. A mãe nem precisava acordá-lo. O pai, quase sempre, já estava a caminho da roça para o trabalho com a plantação. Algumas vezes pegava carona na carroça do pai que o deixava próximo da rua da escola. Outras vezes, ia a pé mesmo. Com chuva, o sol da manhã, ou aquela neblina gelada que o deixava com o rosto vermelho e molhado. A professora via que ele era um menino diferente. Ah, logo aos 10 anos teve que usar óculos. Vivia copiando errado as lições no caderno. Um primo distante, certa vez lhe deu uma coleção de livros. O título “A História Sincera da República”. Leu tudo, devorou tudo. A miopia aumentava a cada ano, na mesma proporção que aumentavam suas notas e os livros lidos.

Trinta anos depois, Eduardo, com uma brilhante carreira de advogado, depois promotor obstinado, tinha sido nomeado procurador da república. Não admitia nada que não fosse o justo, o correto, o legítimo e verdadeiro. O bem público acima de tudo.

Ernesto, no mesmo tempo, tinha transformado sua luta e seus sonhos numa heroica aventura. Dos grotões do seu Nordeste, aos mais altos cargos do seu sindicato, depois do partido que ajudou a nascer. Agora, ele era o maior mandatário do país. Milhões de votos o levaram a Brasília.

Na porta do teatro, pela primeira vez, Evilásio segurava o convite para participar da entrega de prêmio para as melhores produções do teatro de São Paulo. A família toda o intimara para ir prestigiar o Júnior, indicado para o prêmio de melhor diretor de teatro da capital.

Eduardo chamou seu assistente na Procuradoria Geral da República. O que escrevera era inédito. Pedia a prisão do Presidente da República. Tantos crimes, tantos crimes. Pedia justiça. Pela lei.

Atônito, Evilásio nem percebera que seu menino havia ganho o prêmio de melhor diretor de teatro de São Paulo. Recebeu um forte abraço do Júnior. Ali, seu sonho virava realidade. Júnior vencera.

A notícia era esperada na ampla sala daquele simbólico palácio. Era prisão mesmo. Não havia escapatória, subterfúgios, mentiras. Assinou a carta de renúncia. Ernesto saiu pela porta dos fundos.

Chegando em casa, Evilásio viu na TV a notícia que seu amigo de fábrica havia renunciado. Nunca ouvira falar naquele procurador corajoso que resolvera pedir a prisão do Presidente da República. Que homem corajoso, esse doutor Eduardo! E falou para dois netos, adolescentes que o acompanhavam diante da televisão: Eu sabia, eu sabia que esse baixinho não ia sair bem de tudo o que aprontou ao longo dos últimos 30 anos. Ainda bem que eu votei nele só uma vez! Se arrependimento matasse...


Rogério Viana

(diante do noticiário da prisão do Governador Arruda, do Distrito Federal)

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